Dignidade em fim de vida? Sim, sem eutanásia

Isabel Galriça Neto, Expresso, 2016.02.13

Depois da publicação há uma semana de um manifesto em defesa da despenalização da morte assistida, subscrito por personalidades das mais variadas áreas, Maria Galriça Neto (médica, deputada do CDS, diretora da Unidade de Cuidados Paliativos do Hospital da Luz e presidente da Competência de Medicina Paliativa da Ordem dos Médicos) assina uma reflexão sobre um tema que reentrou na discussão pública 
Muito nos preocupa que pessoas em situação de doença grave, terminal e incurável possam estar em sofrimento desmedido. Essa realidade é hoje tratável através de bons cuidados clínicos – os Cuidados Paliativos - que intervêm activamente no sofrimento em todas suas dimensões, evitando que ele atinja níveis intoleráveis. As pessoas assim tratadas querem viver, não querem que acabem com a sua vida. Preocupa-nos também, e muito, que tantos portugueses, cerca de 70%, não tenham ainda acesso a esses cuidados de saúde. Esta sim, é a realidade que fractura, e que urge continuar a melhorar. 
Mais, poucos portugueses aderiram ao testamento vital, ou debatem serenamente com os seus médicos e familiares os tratamentos que entendem dever ou não dever optar por fazer e as consequências dos mesmos. Até por isso, convém relembrar que nenhum médico está ética ou legalmente obrigado a prolongar a vida de um doente incurável e terminal através de tratamentos fúteis e à custa de maior sofrimento – a chamada obstinação terapêutica. Infelizmente esta continua a acontecer, constituindo uma prática sancionável pelo código deontológico dos médicos, tal como o é aliás a eutanásia. 
A realidade das doenças que não se curam, do sofrimento humano, nomeadamente em fim de vida, é difícil de olhar nos olhos e lamentavelmente preferimos muitas vezes não a debater. Mas precisamos de o fazer. Concordamos que o sofrimento por doenças graves e incuráveis existe, mas certamente divergiremos na resposta a dar-lhe. Há que intervir. Será que para se resolver este problema a sociedade acha que retirar a vida a alguém é uma resposta aceitável? 
A questão da eutanásia não permite abordagens simplistas. Não é uma questão confessional, não é uma questão de direita ou de esquerda, mas também não é um tratamento médico. É sim uma questão de valores de toda uma sociedade. Exige-se um debate esclarecedor e participado, não há que ter medo dele. 
Para um debate esclarecedor, a linguagem tem que ser o mais clara possível, e para tal não servem eufemismos ou distorções. Ao associar a morte induzida por terceiros ao conceito de “morte digna”, este torna-se limitado e muito redutor, já que aparentemente só teriam Dignidade na morte aqueles a quem, para pôr fim ao seu sofrimento, é tirada intencionalmente a vida. E tal não é verdade. E já o termo “morte assistida”, outra expressão ainda mais vaga, faz questionar sobre o que acontece a muitos milhares de portugueses que morrem naturalmente, sem pedirem eutanásia, e cuja vida não é deliberadamente retirada. Terão eles mortes sem assistência? Sejamos ou não a favor da eutanásia, indubitavelmente que aspiramos a ter Dignidade na Vida e na Morte, e que quereremos ter assistência que garanta a nossa serenidade no final de vida. 
O mesmo se poderá dizer sobre a questão do “sofrimento intolerável nos doentes sem esperança de cura”, enquanto critério para solicitar eutanásia. 
Quem o irá definir com objectividade, ainda mais quando a resposta se trata de uma opção irreversível e drástica, uma morte? Ou será este termo um saco sem fundo que vai permitir que doentes crónicos e sem esperança de cura, mas não necessariamente nos últimos tempos de vida, possam pedir para terminar com as suas vidas? E não será isso também reforçar o poder médico, o poder de quem decide, em detrimento da vontade de quem efectua o pedido e que pretende afirmar a sua autonomia? E os pedidos recusados, não corresponderão eles também a uma expressão legítima de autonomia? Quando uma sociedade aceita a premissa de que matar é uma resposta legítima para o sofrimento humano, a definição de sofrimento que o justifica vai expandir-se contínua e paulatinamente. 
Se a questão não é de sofrimento intolerável em fim de vida mas sim de “direito a escolher”, afirmando que se trata de um direito individual, então convirá lembrar primeiro que o direito à vida é central na nossa Constituição (artigo 24º), sendo mesmo considerado que a vida humana é inviolável. Ela é um bem patrimonial, é a base do exercício de todos os outros valores. O direito ao exercício da autonomia e à Dignidade – e esta é um valor intrínseco ao ser humano, que não se apouca em circunstâncias de deficiência ou de doença - não pode nunca contrapor-se ao direito á vida. A humanização da morte e do morrer é incompatível com a eliminação daquele que está doente. 
Ao viabilizar uma lei que “garanta a opção por escolher morrer”, mais não fazemos do que, através de um outro eufemismo, pretender viabilizar o direito a que um médico acabe com a nossa vida, num acto que contraria uma ética médica milenar e que distorceria completamente a relação médico-doente. 
O que estamos também a dizer é que o próprio Estado viabiliza uma opção que tem consequências na forma como toda a sociedade olha para os mais vulneráveis, nomeadamente os que estão doentes e em fim de vida. O Estado não pode nunca demitir-se de conhecer o impacto das escolhas individuais dos seus cidadãos no Bem Comum. Não pode desconhecer as consequências das leis que nele vigoram: leis similares como as da Bélgica e da Holanda, têm permitido que sejam mortas por eutanásia pessoas “cansadas de viver”, em luto, com doença mental, pessoas que não estão numa situação terminal e, mais grave ainda, pessoas que não o pediram (homicídio). A realidade desses países está lá, com números oficiais indesmentíveis e sempre crescentes. E ao contrário do que a maioria das pessoas poderia supor, não estamos em presença de casos excepcionais. De acordo com projecções estatísticas a partir dos dados oficiais belgas e holandeses, no nosso país esses números seriam sim da ordem dos milhares de casos por ano (3 a 4% do total de óbitos ocorridos). Quem pode hoje dar-nos certezas de que estas leis não levarão a laxismos e a exageros que, de início, sempre se prometeram não vir a acontecer? 
Do que aqui expusemos, fica claro que o tema é complexo, tem elevado impacto na vida das pessoas e na sociedade. Exige-se por isso cautela nos debates e uma informação exemplar. Não nos precipitemos. 
Médica, Diretora da Unidade de Cuidados Paliativos Hospital da Luz; Presidente da Competência de Medicina Paliativa da Ordem dos Médicos; Deputada CDS-PP

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