A mesmice

Helena Matos
Observador 14/2/2016

A mesmice é isto: chamar-se em 2018 tempo novo ao que em 2011 nos levou à falência. Só a mesmice permite a António Costa falar como se apenas contasse com a com a sua esperteza.
“Há matérias que, pela sua natureza, convidam a consensos políticos mais amplos e acho que seria uma pena se o PSD continuasse fechado naquele casulo perdido no passado e não regressasse ao tempo presente”, diz.” Quem “diz” é António Costa primeiro-ministro e líder do PS.
Presume-se que o “casulo perdido no passado” tenha sido tecido no dia 4 de Outubro, de 2015, aquele em que António Costa não só não teve a maioria absoluta, em nome da qual afastara António José Seguro como nem sequer ganhou as eleições. Ninguém gosta de falar das suas derrotas mas contar com o silêncio dos que ganharam e ainda por cima querer transformar essa vitória num luto para os vencedores – «Ao Expresso, o PM diz que é preciso “respeitar o luto da direita”» – é muito contar que os outros são parvos. E sobretudo apostar quase tudo naquela que se tornou a sua vitória eleitoral possível depois de Outubro de 2015: ver o PSD afastar-se de Passos Coelho.
Enfrentar na próxima campanha eleitoral o homem que o derrotou em 2015 não é aquilo que Costa mais deseja, para mais numa campanha que, tenha ela lugar quando tiver, o obrigará a ter de captar votos à direita. Mas, e muito para lá daquilo que vier a ser o destino de Passos, em 2016 vemos Costa a relançar uma questão que está em cima da mesa desde 1974: as bases do espaço político à direita do PS votam para que os seus líderes afirmem um projecto político próprio. Contudo, à excepção de Sá Carneiro e de Cavaco Silva, boa parte dos demais líderes sociais-democratas não levaram a sua ambição além de conseguir sobreviver às lutas internas do seu partido e obter o certificado de político civilizado que em Portugal apenas é válido quando assinado por personalidades de esquerda. Um líder do PSD que aliene e se aliene do seu eleitorado, como aconteceu com Balsemão nos anos 80, faz parte de todos os sonhos dos dirigentes socialistas.
É desnecessário escrever que jamais um líder do PSD teria chegado a primeiro-ministro apoiado em acordos tão vagos quanto aqueles que o PS firmou na presente legislatura. E mais desnecessário ainda será lembrar que teríamos manifestações diárias, observadores internacionais e a Amnistia Internacional todos em transe com a subversão do regime caso a nossa primeira-ministra sombra fosse não de extrema-esquerda mas sim de extrema-direita.
Mas sendo tudo isto óbvio temos de acrescentar um outro elemento, um elemento que permite a António Costa falar como se apenas contasse com a sua esperteza. O elemento José Sócrates. Sim, eu sei que parece mal referir Sócrates. Os socialistas ficam como que com uma nevralgia mal ouvem esse nome. E os seu colegas radicais esses parecem sofrer de engasgo súbito à simples menção do nome do antigo primeiro-ministro.
Mas fazem mal pois devem-lhe muito. Muitíssimo mesmo. Devem-lhe o poder fazer de conta que a falência em 2011, o crescimento da despesa pública, o endividamento crescente do país… resultaram das estapafúrdias circunstâncias de vida privada do antigo dirigente socialista e não das políticas sufragadas pelos actuais dirigentes do PS.
Entre o pícaro dos envelopes com garrafas, o curso assim assim, o livro escrito assim assado e o enredo das transferências do amigo Silva deixámos de analisar e avaliar o que foi a governação PS. Ao fulanizar-se em Sócrates o ónus dessa governação isentaram-se de responsabilidades os governantes da época e as opções por que foram responsáveis. Opções populistas, como o aumento da função pública em 2009, opções demagógicas como as vias sem custos para o utilizador, opções patéticas como rendas atribuídas às PPP. Foram essas opções e não as férias de Sócrates em Formentera ou o apartamento em Paris que nos levaram a ter de fazer o pedido de ajuda.
Resguardados no biombo do “parece mal” e do “não falo de assuntos que estão em investigação”, socialistas e seus compagnons preservaram-se de ser confrontados com as políticas da sua governação. E agora aí andam felizes e impantes a repetir a mesma receita com as mesmas técnicas porque a receita não foi posta em causa. Apenas o estilo e as particularidades do então primeiro-ministro. Simbólico de tudo isto: as medidas tomadas pelo governo PSD/CDS eram invariavelmente justificadas pelos próprios membros desse governo através da situação de urgência orçamental e pela pressão dos credores. Como se o governante ideal fosse José Sócrates desde que devidamente expurgado das roupas de Rodeo Drive e daqueles embaraços do Free Port e dos sucateiros.
A mesmice é isto: conseguir chamar-se em 2018 tempo novo ao que em 2011 nos levou à falência. E sobreviver ao ridículo.

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