O homem que não temia as FP-25

José Carlos Marques | Correio da manhã, 21.02.2016  15:00 

Trinta anos após ser assassinado, Gaspar Castelo-Branco foi condecorado. Família e amigos recordam homem de coragem. 

Manuel Castelo-Branco tinha 17 anos naquele dia 16 de fevereiro de 1986. "Lembro-me como se tivesse sido ontem. Fui eu que encontrei o meu pai." Prostrado no meio da estrada, jazia o corpo de Gaspar Castelo-Branco. Duas balas na nuca, disparadas pelas costas a curta distância, abreviaram a vida do então diretor-geral dos Serviços Prisionais. Tinha 53 anos e há muito que recebia ameaças de morte da organização terrorista FP-25. O grupo criado em 1980, responsável por diversos atentados, assaltos à mão armada, sequestros e outras ações violentas – que resultaram na morte de 17 pessoas (quatro das próprias FP) – contestava o homem que tinha restringido a liberdade de movimentos dos detidos do grupo na Penitenciária de Lisboa e que tinha enfrentado sem sinal de cedências as suas greves de fome e queixas de maus-tratos. Gaspar Castelo-Branco andava armado. Mas descurava, propositadamente, a sua própria segurança: "O meu pai, para não amedrontar a família, abdicava da segurança aos fins de semana. Tinha sempre o cuidado de nos proteger. Não falava das ameaças de que era alvo. Eventualmente a minha mãe ou alguns amigos poderiam ter mais a noção do que se estava a passar. Mas senti que havia alguma ameaça quando comecei a ver o meu pai com guarda-costas." Naquele fatídico sábado, Gaspar tinha saído de casa a meio da tarde para ir visitar um amigo que estava hospitalizado. Tinha amigos para jantar e, no regresso, lembrou-se de parar numa mercearia perto de casa, na rua Buenos Aires, bairro da Estrela, Lisboa. Comprou um queijo. Foi o seu último gesto. 
SILÊNCIO DOLOROSO 
Trinta anos depois, o diretor-geral foi condecorado a título póstumo pelo Estado português. O presidente Cavaco Silva, que era primeiro-ministro à altura do homicídio, entregou na última segunda-feira as insígnias da Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique à viúva do homenageado, Maria Isabel Castelo-Branco. Quebrou-se assim um silêncio que a família – Gaspar Castelo-Branco deixou duas filhas e um filho – foi obrigada a enfrentar. "Esta condecoração significou o restabelecimento da verdade e a reparação de uma profunda injustiça. Todo este processo, para além da brutalidade de ver um pai assassinado, teve depois o desenvolvimento do julgamento e a forma como este decorreu. Os operacionais das FP-25 foram julgados, foram condenados e não cumpriram pena. Não cumpriram pena por vários artifícios legais e administrativos. A sentença nunca transitou em julgado. Pelo meio, foram primeiro indultados, depois amnistiados pelo Dr. Mário Soares, então Presidente da República", lembra Manuel Castelo-Branco, de 47 anos, administrador dos CTT. O filho do diretor-geral percebe os motivos que levaram a este desfecho, mas não aceita. "Consigo perceber que haja por parte do Estado uma vontade de pacificar ou de tentar por várias formas terminar a marginalidade de um grupo terrorista. O que não posso aceitar é que o faça sem olhar às vítimas e, pior do que isso, ostracizando as vítimas. O meu pai foi a mais alta figura do Estado a perder a vida no exercício das suas funções desde o 25 de Abril. Garantidamente, ações como a do meu pai ajudaram a construir o estado de direito que temos hoje". Nenhuma figura do Estado compareceu no funeral. Cavaco Silva era primeiro-ministro, Mário Soares tinha sido eleito mas ainda não tinha tomado posse. O presidente era Ramalho Eanes enviou uma carta à família – o único gesto de reconhecimento que a mulher e filhos receberam. "Apareceram algumas pessoas que eram figuras do Estado no funeral, mas a título pessoal. Fizeram-no como amigos. No mesmo mês, foi assassinado um guardia civil espanhol pela ETA e teve no enterro quer o rei quer o primeiro-ministro, Felipe González. Lembro-me perfeitamente, porque nos chocou a diferença", conta Manuel. 
CORAGEM SERENA
 José Nogueira de Brito, antigo deputado do CDS, era um dos convidados para o jantar daquela noite de 16 de fevereiro de 1986. "Estava a trabalhar no meu escritório quando recebi um telefonema. Alguém tinha ouvido na rádio a morte de Gaspar Castelo-Branco. Foi um choque tremendo", lembra à ‘Domingo’. Sabia que o amigo recebia ameaças, e admirava a forma como lidava com elas. "Ele tinha uma noção de ética muito cerrada acerca da missão da Função Pública e do cargo que ele desempenhava. Não admitia cedências." Acompanhou o drama da família, que penou muitos meses até receber alguma indemnização do Estado. "É gente de fibra", diz o ex-político de 78 anos, para quem a discreta cerimónia da última segunda-feira no Palácio de Belém não é suficiente para apagar o silêncio a que Gaspar foi vetado durante anos. "Houve uma cobardia coletiva em relação a Gaspar Castelo-Branco ao longo de demasiados  anos.  Percebo que a família preferisse uma cerimónia discreta, mas ele merecia um ato público com outra visibilidade." Outro amigo próximo, o professor de Direito Bernardo Lobo Xavier, conhecia Gaspar desde a juventude. Nascido em Coimbra, o  diretor-geral das prisões fez Direito na cidade do Mondego e participava na vida académica. Foi um dos fundadores da República do Pagode Chinês, onde Bernardo Lobo Xavier, mais novo cinco anos, também viveu. "Era um homem de um sentido de humor finíssimo. E de uma coragem a toda prova, mas não no sentido da fanfarronice. Era um homem sereno", conta. O académico lembra o percurso do amigo. "Antes do 25 de Abril foi secretário do ministro da Justiça e foi depois escolhido com outros juristas de valor para dirigir as prisões. Passou por vários estabelecimentos". Já depois do 25 de Abril, Gaspar dirigiu as prisões do Limoeiro, do Aljube e das Mónicas (para mulheres). Preocupava-se com o bem-estar dos presos e era estimado por eles. O filho Manuel recorda um episódio quando a família vivia numa casa anexa à prisão do Limoeiro (onde hoje funciona o Centro de Estudos Judiciários), em Lisboa. "Eu tinha 6 ou 7 anos e houve uma fuga de presos no Limoeiro. Aquilo era horrível, havia celas de 18 ou 20 reclusos, fizeram um furo e fugiram. Um deles foi lá bater à porta de casa. Pedia muita desculpa mas explicava que tinha sido obrigado a fugir. Era o Joaquim, nunca me esqueci do nome." Nomeado pelo ministro da Justiça Menéres de Pimentel para diretor-geral dos Serviços Prisionais (DGSP) ao tempo do governo do Bloco Central, assumiu o cargo em 1983. No ano seguinte, a PJ desencadeou a Operação Orion, que levou à detenção da maior parte dos operacionais das FP-25. O fotógrafo e artista plástico Jorge Molder trabalhava então nos serviços educativos da DGSP e lidou de perto com Gaspar Castelo-Branco. "Era um homem muito sério e trabalhador. Tinha talvez um defeito, assumia as decisões superiores como se fossem suas e dava demasiadamente a cara por elas". Bernardo Lobo Xavier tem opinião mais crítica. "O Gaspar chamou a si responsabilidades e tomou decisões que deviam ser de outros. Não cedia a chantagens. O Ministério da Justiça então liderado por Mário Raposo comportou-se de maneira lamentável e vergonhosa." José Nogueira de Brito tomou a palavra na Assembleia da República para evocar o amigo assassinado, poucos dias depois do crime. "O Estado não se comportou como devia. Depois de ele ser assassinado, na própria penitenciária apareceu uma inscrição numa parede a gabar a sua morte. Aconteceram coisas inaceitáveis." Por estes dias, o filho de Gaspar Castelo-Branco recebeu uma carta de um antigo funcionário da DGSP que trabalhou com ele. Conta que, a princípio, antipatizou com a figura, mas que aprendeu depois a admirar a sua dedicação ao cargo. E recupera da memória uma história exemplar, passada na sede da DGSP, no Torel, em Lisboa: "Numa ocasião estava um diretor suando depois de almoço numa tarde de verão particularmente quente, no gabinete minúsculo em que trabalhava. Com o suor a escorrer foi direito ao gabinete de Gaspar Castelo-Branco: – Senhor diretor-geral, não consigo trabalhar no meu gabinete. Aquilo é insuportável. Nem uma ventoinha tenho! Olhe como estou! O diretor-geral, calmamente, enquanto se ia abanando com um pedaço de cartolina, olhou, em redor, confirmando que também não tinha ventoinha e, muito menos, ar condicionado. Com a fralda da camisa saindo atrás das calças como sucedia muitas vezes e com o nó da gravata perto do segundo botão da camisa, disse: – Com o dinheiro que tenho disponível posso dar-lhe metade deste cartão, quer?" Restou ao diretor pôr o rabo entre as pernas e ir trabalhar exatamente sob as mesmas condições em que trabalhava o seu diretor-geral. 
CRIME SEM CULPADO 
O assassino de Gaspar Castelo-Branco nunca respondeu em tribunal pelo crime. Na altura, as notícias davam conta de um carro parado à porta do diretor, com dois homens lá dentro. Um deles saiu para alvejar Gaspar Castelo-Branco pelas costas, atingindo-o duas vezes na nuca. Provou-se que a arma do crime já tinha sido usada noutras ações das FP-25, mas esta nunca foi encontrada. A ‘Domingo’ falou com um dos investigadores da então Direção Central de Combate ao Banditismo, unidade criada na PJ para travar as FP-25. Segundo este elemento, a polícia terá chegado a uma lista de dois ou três suspeitos, mas nunca se conseguiram reunir provas para os acusar daquele crime em concreto. Manuel Castelo-Branco desvaloriza a situação. "Não é importante saber quem é. É irrelevante. Não acho que o autor material seja muito diferente do autor moral." O que lhe custa mais neste processo é ter assistido à condenação dos operacionais das FP-25 para depois os ver serem libertados ao fim de poucos anos de reclusão, depois de um indulto e de uma amnistia presidencial. Custa-lhe sobretudo ver Otelo Saraiva de Carvalho – que o tribunal deu como provado ser líder da organização – ver a carreira militar reconstituída, com direito a indemnização superior às que receberam as vítimas: "O meu problema não é com a história. É mais com a forma como até os órgãos de comunicação social sempre lidaram com este tema. E até a forma como frequentemente havia um certo branqueamento da imagem de Otelo. Parecia um romântico, utópico. Quando no fundo era um assassino, o chefe de um bando de assassinos". 
CERIMÓNIA SIMPLES, COM A VIÚVA, FILHOS E OS NETOS QUE NÃO CONHECEU
Foi a pedido da família que a condecoração póstuma de Gaspar Castelo-Branco só foi comunicada publicamente depois de ter sido realizada – na última segunda-feira, no Palácio de Belém. Cavaco Silva atribuiu ao antigo diretor da DGSP a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. Recebeu-a a viúva do homenageado, Maria Isabel Castelo-Branco, também ela funcionária pública, mas noutro setor do Estado. Estiveram na cerimónia as duas filhas (que na altura do crime tinham 18 e 13 anos) e Manuel, o filho do meio, que contava 17 anos quando o pai foi abatido. Gaspar Castelo-Branco era um homem de família. Era um pai presente e dedicado. Não viveu o suficiente para conhecer os netos – que estiveram os sete no Palácio de Belém.

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