NÃO MATARÁS

Padre José Tolentino
Expresso, 2016.02.27

Mesmo o sofrimento mais intolerável pede ainda para ser interpretado, e para sê-lo com a chave da vida 
o argumentário dos defensores da eutanásia tem surgido como razão maior a necessidade de colocar fim ao que designam por “sofrimento intolerável”. É, por todos os motivos, uma razão que nos deve calar a todos, pois perante um sofrimento tal não há receitas, evidências fáceis ou recursos de mão. Porque o sofrimento é uma estranha boca sem lábios, uma estranha língua sem palavras, um ininterrupto zumbido que se solta do próprio som, mas nunca mais nos solta. Invade-nos com o poderio e a frieza de uma colossal máquina de guerra. E abala tudo: das mínimas articulações do corpo às dobras imensas da alma. 
Contudo, mesmo o sofrimento mais intolerável pede ainda para ser interpretado, e para sê-lo com a chave da vida. Desistir de escutá-lo até ao fim, e para lá do fim, é desistir de amparar a vida como ela é, na sua nua e vulnerabilíssima manifestação. É preferir uma qualquer idealização (ou fuga) que diz o que a vida deveria ser, como se fossemos nós a decidir o que a vida é. E não somos. Pois quem pode, com verdade, considerar-se dono da vida? Não seremos antes guardadores, e apenas isso, apenas guardadores desse mistério que é maior do que nós? 
Pensando no “sofrimento intolerável” lembrei-me daquele que é talvez o mais conhecido conto de Raymond Carver. Chama-se “De Que Falamos Quando Falamos de Amor” e é certamente um dos arrebatadores textos da literatura do nosso tempo. Dentro da história que Carver conta há uma história. Na intrincada deriva de coisas ditas e silenciadas, vozes que poderiam ser as nossas perguntam-se umas às outras, trazendo à tona o difícil, o naufragado, o irremovível amor: “O que é que uma pessoa faz com um amor assim?”, “Aquilo parece-lhes amor?”, e por aí fora. Até que, no pátio, um dos cães principiou a ladrar. E então uma personagem diz: “Vou dizer-lhes o que é o verdadeiro amor. Quer dizer...vou dar-lhes um bom exemplo e, depois, podem tirar as vossas conclusões...” E a personagem, um médico de nome Mel, contou que numa noite de junho, quando se preparava para jantar em casa, foi chamado de urgência ao hospital, porque tinha havido um acidente na Interestadual: um rapaz com os copos tinha esmagado de frente o camião do pai numa caravana guiada por um casal de velhotes. O miúdo morreu ali na estrada e os dois velhotes chegaram ao hospital com a vida segura por um fio: ferimentos, hemorragias internas, lacerações, tudo o que se possa pensar. E tinham ambos também fraturas cranianas. Os médicos fizeram o que estava ao alcance deles e transferiram-nos para os cuidados intensivos. Durante duas longas semanas aqueles dois lutaram pela vida, com uma força que ninguém percebia de onde lhes viesse, e a verdade é que começaram a melhorar em quase todos os indicadores clínicos. O chefe de serviço decidiu então transferi-los para um quarto particular. Nesse tempo, Mel ia visitá-los todos os dias, às vezes duas vezes por dia, como calhava. Os velhotes estavam enrolados em gesso e ligaduras, da cabeça aos pés. Apenas umas minúsculas aberturas nos olhos, no nariz e na boca. Ora, aconteceu que o marido mergulhou de repente numa duríssima depressão. Mesmo depois de saber que a mulher iria viver, ele parecia afundado num sofrimento inominável. Até que um dia Mel aproximou o seu ouvido da abertura da boca. E conseguiu perceber o que o velhote lhe dizia. O maior sofrimento dele não era o do acidente, mas o facto de não conseguir agora avistar a sua mulher por causa daquela abertura do gesso demasiado estreita.

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