Portugal são dois

João César das Neves
DN 2015.10.14

Existem dois países diferentes lutando em Portugal. Esta afirmação não espanta, pois há séculos que várias classificações referem uma dicotomia lusitana. Absolutistas e liberais, monárquicos e republicanos, fascistas e democratas, ricos e pobres, esquerda e direita, múltiplas bifurcações foram ventiladas para explicar a situação nacional. Hoje, nenhuma dessas alternativas é relevante. O embate é novo, mas igualmente decisivo.
Ao entrar na Europa, em 1986, Portugal apresentava a dualidade típica de país em transformação. Sectores abertos, dinâmicos e integrados confrontavam segmentos arcaicos, reclusos, obsoletos. Graças ao apoio europeu, mas também à capacidade nacional, as décadas seguintes foram espantosas, conseguindo-se uma evolução notável em todos os níveis. Tudo mudou, das infraestruturas à especialização, das condições sociais aos hábitos e atitudes dos cidadãos. A antiga clivagem entre o Portugal progressivo e anacrónico foi-se esbatendo, deixando de ser decisiva. Hoje, em qualquer zona, sector ou actividade, estamos no mesmo país, aberto, moderno, europeu. Temos problemas, como todos, mas vivemos ao nível comunitário.
Sanada a antiga clivagem, surgiu uma nova. No meio do notável progresso foi ganhando preponderância um terrível veneno: o dinheiro fácil. Era a velha peçonha da pimenta da Índia e do ouro do Brasil, agora regressada na forma de fundos europeus e empréstimos internacionais, sem sequer exigir viagens e epopeias. Nos primeiros anos, a infecção foi dominada pelas exigências da adesão à comunidade e à moeda única, mas, logo que o sucesso ficou garantido, o vírus grassou sem entraves. Assim nasceu a primeira ruptura do Portugal desenvolvido.
A nova dicotomia não está nas condições de vida, mas na atitude perante ela. A evolução das últimas décadas, inserindo o país na economia global, trouxe consigo desafios e direitos. O novo Portugal está dividido segundo estes dois elementos. Em todos os níveis da sociedade surgiram duas mentalidades diferentes no que toca ao desenvolvimento. Há os que enfrentam os desafios e os que exigem direitos, os que procuram vencer num mundo em transformação e os que reivindicam o ganho, omitindo a necessidade de o obter.
A principal dificuldade da nova dualidade é a sua subtileza. Ao contrário de 1986, não é fácil hoje identificar cada lado, porque todos pertencemos ao mesmo país, aberto, moderno, europeu. Por isso as duas linhas manifestam-se em todos os sectores, partidos, forças e interesses. O contraste não é de trabalhadores e empresários contra corruptos e parasitas, mas entre os que produzem mais ou menos do que aquilo que recebem. Ou melhor, entre os que determinam os seus ganhos pelo que criam e os que reivindicam direitos abstratos, superiores ao que lhe é devido. Os que vêem o país e a Europa como exigência ou garantia. Mesmo as pessoas activas, ocupadas e produtivas podem estar infectadas pelo dinheiro fácil, auferirem mais do que geram e acabando do lado oportunista.
O Estado transformou-se no grande mecanismo para retirar às forças produtivas, distribuindo aos influentes, embora a banca e outras redes também colaborem. Por isso o sinal mais evidente do poder das forças de protesto é o défice do Orçamento. As despesas públicas são declaradas incompressíveis, mesmo que não haja dinheiro para as pagar. Após anos de intensa austeridade, a dívida ainda cresce e as contas continuam por saldar. A solução é aumentar os impostos sobre quem produz ou invocar um crescimento mítico que servirá para pagar todas as exigências e promessas. Crescimento que ninguém sabe de onde vem, com as empresas espremidas pelo fisco. Acredita-se que alguém vai reembolsar os direitos dos portugueses. Não de todos os portugueses, mas dos que se conseguem impor.
Na dualidade, os dois lados não têm a mesma visibilidade, pois a face oportunista e reivindicativa monopoliza as atenções. A informação anda cheia de exigências, não de esforços; de desilusões, não de diligências; de acusações, não de investimentos. Fala-se mais dos funcionários do que dos pobres, dos pensionistas do que dos trabalhadores, dos subsídios do que dos inovadores.
Com o debate tão enviesado, afirmar que Portugal são dois significa chamar a atenção para a existência, apesar de tudo, de um país sensato, produtivo e laborioso, comprometido no futuro, criando já um surto de desenvolvimento. Os obstáculos levantados pelo outro Portugal são inúmeros, mas a luta continua. Ainda é cedo para determinar quem vencerá, mas o sucesso nacional depende disso.

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