A porta dos fundos

Sérgio Figueiredo
DN 2015.10.19
William Pitt foi um reformista que estabeleceu as bases da prosperidade do Reino Unido após a Guerra da Independência dos Estados Unidos, foi um estadista que lançou os princípios dos impostos sobre os rendimentos no final do século XVIII, foi tudo isto e mais outras coisas, mas foi devido à idade em que assumiu funções de primeiro-ministro que ficou famoso: 24 anos, até hoje o mais jovem da história.
Apesar de antes já ter sido, por um ano, ministro da Economia, a Câmara dos Comuns recebeu-o como um imberbe, político inexperiente, um garoto impreparado. A resposta veio logo na tomada de posse, com um discurso notável. Notável pelo que disse - sobre a origem do poder, sobre a legitimidade do seu exercício. Mais notável ainda pelo que toda a gente percebeu - o carisma, a força das convicções, a capacidade de galvanizar uma plateia.
"Não cheguei aqui pela porta dos fundos!", lembrou Pitt aos deputados no discurso que o levou a Downing Street. Pois isto é tudo o que António Costa não pode dizer. Pelo contrário, se lá chegar - e é óbvio que a única coisa que quer é chegar - é claro e evidente o caminho que escolheu: a porta dos fundos.
Chamem-lhe racional, elogiem o pragmatismo, pode até ter nascido o líder que une as esquerdas, mas isto só tem um nome que não pode aqui ser escrito. Não é educação que se dê às crianças lá em casa. Não pode sequer ser um sonho. Ou será que foi isto que António Costa sonhou? Uma vida dedicada à política e às causas, para chegar a este ponto? Ser primeiro-ministro à socapa e formar um governo por exclusão de partes?!
A minha opinião pessoal nada acrescenta ao coro daquelas que se têm admirado, indignado, chocado, questionado ou criticado. O método, a forma e o conteúdo. Não é para dizer o que ninguém disse, para ver o que ninguém viu, nem há a pretensão de procurar aquele ângulo original do comentário político. Nada disto. Também tento evitar julgamentos morais. Não se pode ficar indiferente - porque não é mesmo nada indiferente - à forma como "lá se chega". Mas não para julgar, porque não sou juiz. Nem penitenciar, porque não tenho vocação de padre.
A ética na política é objeto de reflexão e escrita praticamente desde que os homens refletem e escrevem. E os líderes que escolhemos são feitos pelo carisma natural que têm e pela força de atração que consequentemente exercem em redor de valores, princípios, propósitos, crenças.
Temos em Portugal, pelo menos nos últimos dez anos, escolhido em função do mal menor. O país perdeu os sonhos lá atrás. E os líderes perderam a visão. A vida ficou reduzida a um défice. Esta coligação é pobre nisto e miserável em tudo o resto. Ainda assim, ganhou. Sem força e sem glória, ganhou. Por definição, mereceu a vitória e, consequentemente, merece uma segunda chance para governar.
Com menos força ainda, e sem qualquer glória, a esquerda considera que é a sua vez. E isto abre mesmo uma etapa nova na história política do país. Mas isso são outras contas. É de homens que estamos a falar, dos homens de que a política se faz. Costa ganhou um partido com um "chega para lá" a Seguro. Costa perdeu o país e insiste na carga de ombro. À segunda já não há dúvidas: o "chega para lá" é o método Costa para lá chegar.
Independentemente de tudo o resto, isto não é aceitável. Costa quer entrar pela porta dos fundos, sim. E não há uma forma delicada de classificar aquilo a que estamos a assistir.
Muitos já levantaram a questão da legalidade - e afinal o problema não se coloca. Claro que é compatível com a Constituição, e com a Lei, um governo apoiado por maioria parlamentar de esquerda, mesmo que a esquerda tenha perdido as eleições.
Depois veio a discussão sobre a legitimidade, mas o tema mais relevante é de autoridade política. A capacidade de mandar no governo. A força de conduzir, a resistência para não dobrar, o rasgo para a todos inspirar. Tudo isto depende do próprio, da forma como se senta na cadeira, como se sente ao sentar naquela cadeira. E de como todos os outros olham para ele, ali sentado.
O modo como Costa lá quer chegar, sim, levanta dúvidas de ordem ética e moral. Mas, acima de tudo, o que lhe retira são as condições objetivas para ser, inequivocamente, o número um. O número um para os próximos quatro anos, quando não conseguiu provar que o era nos últimos quatro meses.
António Costa perdeu e carrega aos ombros o peso de uma derrota que só deve apenas a si mesmo. Não teve uma vitória, não tem uma maioria, não tem o partido unido à sua volta. Se não tem mão nos seus, o que poderá acontecer com aqueles que nunca foram aquilo que agora querem parecer?
Costa até pode chegar a primeiro--ministro, mas não terá a autoridade para o ser. À esquerda, a imprevisibilidade total - o doutor Louçã já tratou de notar que o Bloco de Esquerda é várias coisas lá dentro. À direita, um rasto de impossibilidade total - estas semanas deitaram a perder, como há muito tempo não se via, qualquer hipótese de entendimento sobre questões de regime.
Costa pode ser o futuro ex-primeiro-ministro. Igual a Santana, matéria para nove meses. Diferente de Pitt, que tendo o cognome de o Novo não foi nada breve: 18 anos à frente de vários governos, vida farta e morte lenta: cirrose hepática, por consumo excessivo de vinho do Porto. É esta a mais dramática das diferenças: a porta dos fundos só serve a adega; para governar, liderar e ficar na história, primeiro entra pela porta da frente e só depois tem o direito a morrer com um pifo.

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