O povo é sereno… é só fumaça

JOÃO CARLOS ESPADA Público 26/10/2015

A recusa da “maioria de esquerda” foi um traço constitutivo do Partido Socialista de Mário Soares.

Receio que o nosso debate político esteja a sofrer uma radicalização desnecessária e indesejável. E que essa radicalização assente, pelo menos em parte, em asserções emotivas que não estão a ser tranquilamente confrontadas com a experiência acumulada ao longo dos 40 anos da nossa democracia.
Uma dessas asserções consiste em apresentar a chamada “maioria de esquerda” no actual Parlamento como se se tratasse de um facto novo na nossa história parlamentar. Negar essa maioria seria, por isso, “excluir um milhão de eleitores do BE e do PCP do sistema democrático”. Seria, finalmente, um “atentado contra a Constituição” e contra a “soberania da Assembleia da República.”
Deve ser recordado que a maioria numérica da esquerda existiu em 22 dos 40 anos de vida do nosso Parlamento. No entanto, nunca houve governos de maioria de esquerda. Porquê?
A resposta é dada pelos factos: em 22 anos de maioria numérica de esquerda, nunca houve governos de maioria de esquerda porque o Partido Socialista nunca deixou. Porque o Partido Socialista nunca aceitou coligar-se com o Partido Comunista.
Já recordei aqui que, logo a seguir ao 25 de Abril, Manuel Serra liderava no PS a defesa de uma aliança com o PCP. Mário Soares derrotou-o com clássica compostura.
Em 1980/81, Mário Soares recusou apoiar a recandidatura presidencial do General Eanes, apesar de este concorrer contra um candidato comum da chamada “direita”, o General Soares Carneiro. Mário Soares inventou então uma nova figura estatutária: “auto-suspendeu-se” do cargo de secretário-geral do PS, para poder não apoiar Ramalho Eanes — que era apoiado pelo Secretariado do PS e apresentado como candidato da “esquerda unida”. Foi uma decisão gravíssima, que podia ter marcado o fim da sua carreira política.
Ramalho Eanes ganhou as presidenciais de 1980/81. Mário Soares foi dado como “acabado” pelos membros do “ex-secretariado” — que preconizavam uma “maioria de esquerda”. Mas Soares reconquistou a liderança do PS e… ganhou as eleições de 1983, sem maioria absoluta. De novo contra a ala esquerda do PS, recusou qualquer entendimento com os comunistas e… promoveu o Bloco Central com o PSD de Mota Pinto e depois Rui Machete.
Em 1985/86, como também já recordei aqui, Mário Soares lançou quase sozinho a sua candidatura presidencial contra dois candidatos à sua esquerda: Salgado Zenha e Lourdes Pintasilgo. Foi nessa altura que o Clube da Esquerda Liberal e a revista RISCO, que eu na altura dirigia, o apoiámos: ele tinha 8% nas sondagens, mas acabou eleito Presidente.
Finalmente, em 1987, o Presidente Mário Soares recusou as propostas de maioria de esquerda que o PS e o PRD lhe apresentaram. A “maioria de esquerda” PS, PRD e PCP tinha votado uma moção de censura e derrubado o governo minoritário do PSD de Cavaco Silva. Foram a Belém dizer que havia uma maioria de esquerda no Parlamento e que o Presidente Soares tinha de lhes dar o Governo. Mário Soares recusou e convocou eleições antecipadas — que deram a primeira de duas maiorias absolutas a Cavaco Silva e ao PSD.
Por outras palavras, a recusa da “maioria de esquerda” foi um traço constitutivo do Partido Socialista de Mário Soares. Ele pensava que o que separa o PS do PCP não são meras divergências políticas de circunstância, mas sim dois conceitos de sociedade. Não estão no mesmo campo no que diz respeito à democracia e à liberdade.
Os actuais líderes socialistas não estão obviamente impedidos de romper com esse legado do PS. Mas manda a decência que digam publicamente que estão a fazê-lo. E mandam as boas práticas democráticas que os eleitores possam a curto prazo dar o seu parecer sobre o tema.
Quando anunciou as eleições antecipadas de 1987, disse o Presidente Mário Soares: “Como sabem, a regra de ouro nas democracias é, em caso de dúvida — ou de bloqueamento —, restituir a palavra ao Povo soberano, que é, como se diz, « quem mais ordena ». Porque, como ensinou Alexis de Tocqueville, se é indiscutível que os deputados são os legítimos representantes do Povo soberano, não é menos verdade que eles não são, nem podem considerar-se, os representantes soberanos do Povo…”
E, como disse o Almirante Pinheiro de Azevedo em pleno PREC: “O povo é sereno… é só fumaça.”
Mais vale tarde… Jeremy Corbyn, o novo líder esquerdista do Partido Trabalhista britânico, teve de se vestir a rigor e cumprimentar a Rainha num banquete em Londres, na semana passada. Há cerca de um mês, impropriamente vestido, recusara cantar o hino nacional, God Save the Queen, na catedral de São Paulo, numa homenagem aos aviadores e civis caídos na “Batalha de Inglaterra”, em 1940.

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