A ratoeira

João César das Neves
DN 20151028

A situação económica nacional parece uma armadilha montada para caçar o próximo governo. Apesar disso, a atracção pelo poder é tal, que todos os partidos se atropelam para entrar na ratoeira. A insólita circunstância deve mais ao acaso do que ao planeamento, mas o resultado é iniludível.
Comecemos pelo queijo que atrai a vítima incauta. A situação conjuntural mostra-se promissora. A economia cresce há dois anos e o país saiu com sucesso do programa de estabilização há um; a balança externa é positiva e o défice orçamental aproxima-se dos requisitos europeus. Tudo aponta para uma época favorável, aproveitando os próximos governantes os sacrifícios impostos pelos anteriores.
O petisco, porém, é mero engodo, pois os sinais positivos são em grande medida aparentes. A realidade é muito diferente da imagem que a coligação PSD-CDS usou como bandeira nas últimas eleições, e que lhe deu a vitória. Há várias bombas retardadas que gerarão problemas graves nos próximos tempos, exigindo medidas duras.
O crescimento não é suficiente ou sequer sustentável. O desemprego continua altíssimo e perdeu a dinâmica de descida, enquanto o investimento se recusa a atingir um nível decente. No Orçamento, depois de tanto esforço, atingiu-se apenas o limite máximo do intervalo permitido. Pior, a indiscutível redução do défice foi conseguida sobretudo à custa de medidas contingentes e temporárias, com poucas reformas na máquina. Preferiram-se cortes em salários e pensões, que na campanha todos os candidatos se propuseram eliminar. Por isso a tão falada consolidação orçamental está ainda muito longe. Por sua vez, o lado privado da situação financeira não é mais favorável. As empresas continuam descapitalizadas, os bancos permanecem frágeis e a taxa de poupança das famílias encontra-se no mínimo histórico. A conjuntura só é boa se comparada com a anterior.
Dois elementos agravam o quadro periclitante. Primeiro, o cansaço da austeridade. O país, embora longe de ter suportado o ajustamento necessário, sente-se com o dever cumprido e merecedor de alívio. O segundo é a vontade explícita que todos partidos manifestaram na campanha de lho conceder, prometendo tudo o que a ilusão exige.
Assim, qualquer governo que resultar da negociação pós-eleitoral vai ficar mal, faça o que fizer. Se cumprir as promessas, verá a troika regressar em breve; se tiver juízo e proceder como a situação exige, é crucificado por engano aos eleitores. Esses não perdoarão o terrível choque quando a dureza da realidade for compreendida por um país mergulhado em ilusão. A surpresa será fatal para quem estiver no poder, que só então compreenderá ter caído numa armadilha.
A culpa da ratoeira é do anterior executivo, que mostrou incapacidade para realizar reformas verdadeiramente sólidas e duradouras. Mas a esquerda não se pode dizer inocente, pois sempre negou a emergência nacional e foi-se opondo violentamente até às tímidas medidas ensaiadas.
Se a coligação PSD-CDS se mantiver no poder, haverá uma certa justiça poética, sofrendo ela as consequências da sua timidez reformista. Mas a situação mais irónica é a de um governo do PS. Presidindo ao longo desequilíbrio que precipitou a crise e vendo-se forçado a pedir ajuda externa, esteve na oposição durante a execução da austeridade. Então fingiu hipocritamente opor-se às medidas indispensáveis. Agora, com a limpeza feita, quer regressar para beneficiar do equilíbrio arduamente conquistado. Não contava perder as eleições, mas emendando com a inesperada unidade à esquerda mantém o plano de aproveitar o próximo surto de progresso.
Quando a expectativa se mostrar cruelmente falsa, o governo anterior, agora na oposição, dirá credível mas hipocritamente que deixou o país em boas condições, pelo que a culpa dos sofrimentos, realmente inevitáveis, cabe toda à liderança de esquerda. A qual, por sua vez, carrega dois problemas adicionais. O primeiro é a falta de credibilidade junto de mercados e parceiros, seja pela sua aberrante composição ideológica seja pelas promessas ilusórias que insiste em apregoar. O segundo é que António Costa tem de enfrentar todas as dificuldades enquanto executa um número de verdadeiro malabarismo político. Precisa de, com as duas mãos, manter no ar, sem nunca se tocarem, pelo menos quatro bolas: PCP, BE, ala esquerda e ala direita do PS, os inimigos mais irredutíveis da política portuguesa.
Por ilusão do povo e cobiça política, estamos a entrar num período de surpresa e desilusão, até a troika voltar com maioria absoluta.

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