O casamento acabou. Ficou a amizade e o amor platónico

Cole Kazdin | DN 2015.10.18

Gosta-se ainda. Fica o sentimento de família

Os meus pais entraram conscientemente num processo de desacasalamento antes de o desacasalamento consciente ser uma realidade e não esperaram pelo divórcio para o fazer. Ao longo dos 21 anos de casamento, eles nunca discutiram, pelo menos à frente das filhas. A nossa casa dava-nos uma sensação de segurança e de estabilidade.
No entanto, em criança nunca vi romance ou afeto entre eles a não ser um roçar de lábios quando o meu pai chegava a casa vindo do trabalho. Nunca vi o meu pai aproximar-se da minha mãe pelas costas enquanto ela estava a fazer o jantar no fogão, abraçá-la e beijá-la no pescoço como os maridos faziam às vezes nos filmes. Eles eram mais como dois amigos que criavam duas filhas juntos...
Eles adoravam ser pais e eram ótimos nisso. A minha mãe passava horas a ler para mim, a cantar, a participar nos meus jogos de faz-de- -conta. Depois do trabalho, o meu pai e eu víamos o Star Trek juntos.
Ele trouxe para casa um esqueleto de plástico da faculdade de medicina onde era professor e ensinou-me os nomes dos ossos - tíbia, perónio. Construímos um modelo do sistema circulatório humano na banheira. Havia sangue a fingir por todo o lado.
Os meus pais anunciaram o divórcio com calma durante a nossa primeira e única reunião de família. Eu tinha 14 anos e senti-me como se tivesse levado um soco na cara. Não tinha havido nenhuma das pistas que nos preparam para aquilo e que os meus amigos tinham descrito antes dos divórcios dos pais deles. Não houve gritos ou pratos partidos. Tudo estava tranquilo. Os meus pais disseram que nos amavam muito, à minha irmã e a mim, e que o divórcio não era culpa nossa. Mais tarde, quando os confrontei em separado e lhes perguntei a razão, os dois disseram-me que nunca tinham dedicado tempo suficiente à relação entre eles, que tinha sido tudo sempre em função da família. "Então a culpa é nossa", disse eu. "Não, não", asseguraram-me os dois. Eles adoravam-nos e adoravam ser pais.
Uma breve reconciliação alimentou as minhas esperanças e, em seguida, transformou-se em algo ainda mais doloroso: a minha mãe a dormir no sofá na sala, tentando acalmar o choro que, de qualquer maneira, atravessava as paredes da nossa pequena casa.
Após o divórcio começou a verdadeira luta. O bater com o auscultador do telefone (no tempo em que se podia bater com o auscultador do telefone), o ir lá fora para falar, as discussões sobre quem é que ficava com as crianças e em que férias. Eu fui para a universidade, deixando a minha irmã mais nova a aguentar com o dia-a-dia.
Eu nunca compreendi por que razão eles se divorciaram, mas depois de estarem finalmente separados comecei a perguntar a mim mesma como é que eles se tinham sequer casado. Sozinha, a minha mãe floresceu. Ela comprou uma pequena casa num bairro não muito bom e recuperou-a.
O meu pai começou a namorar.
Quando perguntei à minha mãe se ela se conseguia ver a namorar, ela respondeu-me: "Neste momento estou mesmo é a gozar a minha independência." Eles continuavam a falar sobre questões relacionadas com as filhas, mas nada mais do que isso. Pareciam já não gostar um do outro.
Na universidade parti uma perna (tíbia e perónio) e eles foram visitar-me separadamente. Não conseguiam estar juntos na mesma sala.
Eu amava os meus pais, mas odiava voltar para casa e andar para a frente e para trás para os ver. Fazer contas para garantir que os dois tinham o mesmo tempo da minha presença. Ia à igreja com a minha mãe e depois ia almoçar com o meu pai. Duas festas de Ação de Graças em dias sucessivos. Fazia o percurso de 20 minutos de carro entre as duas casas sempre a chorar.
Em adulta, nas minhas relações com homens, eu evitava o confronto. O meu lema era: "Contanto que ninguém fale sobre qualquer questão complicada, tudo vai dar certo." Namorei os meus melhores amigos e ao primeiro sinal de tensão ou discordância separávamo-nos.
O meu relacionamento mais longo foi com um homem com quem namorei cinco anos, acabando e recomeçando por três ou quatro vezes ao longo da relação, basicamente sempre que discutíamos. Era aquilo que eu conhecia.
Na primeira vez que o meu futuro marido, Hugh, e eu tivemos uma discussão, eu assumi que era o fim. "Vou só buscar as minhas coisas", disse eu, a chorar. "Não posso acreditar que nós estamos a acabar."
"De que é que estás a falar?", disse Hugh, parecendo confuso. "Estamos apenas a ter uma discussão." Eu não percebi. Mas ele estava certo. Acalmámo-nos e conversámos sobre o assunto. Continuávamos a achar que o outro não estava com a razão toda, mas fizemos as pazes, fizemos amor, jantámos e vimos televisão. Quando nos deitámos já tínhamos uma compreensão mais profunda do ponto de vista um do outro.
Eu sentia-me como se estivesse a aprender suaíli.
Quando Hugh me pediu para me casar com ele, o meu primeiro pensamento foi: sim. O segundo foi: como é que os meus pais vão estar na mesma sala no casamento? Será que o meu pai vai trazer a namorada? Será que vamos ser capazes de transformar os seus olhares e momentos tensos num jogo? Seria melhor fugirmos para não termos de lidar com problemas familiares?
Nós queríamos uma festa de casamento. Amávamos as nossas famílias e queríamo-las lá. A mãe de Hugh tinha entrado recentemente em remissão de uma leucemia. Não tínhamos tido a certeza se ela estaria viva para ver este dia.
Decidimos casar-nos na minúscula cabana que Hugh possuía nas montanhas de São Gabriel na Califórnia, o nosso refúgio de fim de semana onde ele me tinha presenteado com um belo anel de diamantes alguns meses antes.
A cabana tinha uma divisão com uma cama embutida. Se a cama estivesse recolhida, a sala poderia acolher dez pessoas em redor de uma mesa alugada. Apenas a família chegada. Um dos melhores amigos de Hugh ficou encarregado de realizar a cerimónia. Tudo o que pedi aos meus pais foi: "Por favor sejam agradáveis um para o outro." Por respeito disse ao meu pai para se sentir à vontade para trazer a namorada, mas, felizmente, ele disse que não.
Toda a gente voou para a Califórnia. O meu pai levou-nos todos a jantar na noite anterior a uma estalagem próxima. Toda a gente estava muito feliz.
Na manhã do casamento, a minha mãe, o meu pai, a minha irmã e eu saímos juntos do hotel. A minha irmã levou o meu carro, porque, como ela disse, "a noiva não deve ter de conduzir". Percorri o caminho de terra entre o carro e a cabana de ténis calçados, segurando o meu vestido de casamento na mão esquerda para que ele não tocasse no chão e os sapatos de salto alto (uma coisa azul) na direita.
Contudo, os meus pais ficaram ao pé do carro. Eu não os conseguia ver, mas ouvia-os a rir. Gritei: "O que se passa? Embora? Podemos ir?"
Mais risadinhas. Então vi-os a subir na nossa direção, a minha mãe a rir e o meu pai a segurar-lhe no braço para lhe dar apoio.
Hugh e eu casámo-nos no alpendre da cabana. A mãe de Hugh tinha feito arranjos com flores silvestres. O melhor amigo de Hugh tocou viola enquanto nós dançámos. Bebemos champanhe e comemos lasanha.
Os meus pais sentaram-se um ao lado do outro ao jantar. O meu pai mantinha cheio o copo de vinho da minha mãe. Rimo-nos todos e, às vezes, chorámos - lágrimas boas - e abraçámo-nos uns aos outros.
Alguma coisa estava a acontecer.
Após o casamento, o meu pai separou-se da namorada e, pouco depois, ele e a minha mãe foram juntos à cidade para uma ida a um museu. Uma semana depois foram jantar a um restaurante italiano local. E depois mais uma vez. Tornou-se a tradição deles de domingo. No Dia da Mãe, ele enviou-lhe um cesto da Magnolia Bakery.
"Não foi de lá que veio o teu bolo de casamento?", perguntou-me ela. Sim, tinha sido.
Quando tive de fazer uma pequena cirurgia, eles vieram os dois visitar-me, tendo ficado em quartos de hotel separados. Fomos os três dar um curto passeio.
Eles caminhavam um pouco atrás de mim e eu podia ouvir o meu pai a contar piadas e a minha mãe a rir. Novamente as risadinhas. Fiquei irritada porque eles pareciam estar a gostar demasiado da companhia um do outro em vez de se concentrarem em mim.
Quando eu tentei identificar o momento da mudança, Hugh lembrou-me de que tinha sido no nosso casamento. "Talvez o nosso amor os tenha inspirado", disse ele. "Foi um dia especial, muito especial."
Os meus pais falam agora ao telefone várias vezes por dia. Eles dizem "nós" em vez de "eu". O meu pai compra presentes para a minha mãe sem nenhum motivo especial. Recentemente, ele enviou-lhe uma dúzia de rosas lilases, a cor favorita dela, porque ela estava nervosa à espera do canalizador que vinha reparar a torneira da cozinha.
"Vocês estão a namorar?", perguntei à minha mãe após o incidente das rosas. Faço-lhe essa pergunta uma vez por mês.
Ela dá sempre a mesma resposta: "É platónico. Nós gostamos muito um do outro. E gostamos da companhia um do outro. Nós somos família."
Depois de os meus pais se divorciarem, eu nunca pensei voltar a vê-los juntos na mesma sala (e muito menos a rir). Nunca pensei que passaríamos mais alguma festividade todos juntos. O meu marido e eu fomos a casa para os 70 anos da minha mãe no ano passado e para os 70 anos do meu pai neste ano. Comemorámos todos juntos, como uma família.
Não sei o que o futuro nos reserva. Eu não acho que partilhar a cama fosse necessariamente melhor ou pior do que o que eles já têm. Eles partilham um profundo amor. Eles têm a relação mais afetuosa, mais carinhosa e mais divertida que se pode imaginar.
Eles tornaram-se conscientemente acasalados.

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