Sobre a miragem dos governos presidenciais

Público 2012-10-22 João Carlos Espada

Custa a crer, mas parece que o tema veio para ficar. Refiro-me à ideia, quando não à exigência, de que o Presidente da República substitua o actual Governo, fundado numa coligação de partidos parlamentares eleitos pelos portugueses, por um chamado Governo de iniciativa presidencial e com "personalidades técnicas independentes". O tema merece uma reflexão crítica, pois remete para algumas questões de fundo de uma cultura política democrática.

Os defensores de um Governo de iniciativa presidencial citam frequentemente o exemplo de Mario Monti, em Itália, para reforçar o seu apelo a um Governo "acima dos partidos". Foi justamente contraposto por vários analistas, entre os quais Marcelo Rebelo de Sousa e Paulo Rangel, que encontrar um Mario Monti em Portugal e garantir que um Governo "acima dos partidos" tivesse viabilidade parlamentar seria ainda mais difícil do que a situação actual.

Sem dúvida. Mas gostaria de acrescentar a esse argumento um outro que, de certa forma, o precede: a solução italiana não é desejável, mesmo que fosse possível.

A "solução Mario Monti" foi, no mínimo, peculiar. Seguiu-se a outra solução peculiar do mesmo tipo, a da Grécia, cujos resultados ficaram à vista. Quando, depois do Governo "acima dos partidos", voltaram a ocorrer eleições na Grécia, os partidos centrais não conseguiram sequer obter uma maioria parlamentar entre si. Partidos extremistas, sobretudo da esquerda, mas também da direita, obtiveram votações inéditas, um deles obtendo o segundo lugar. As eleições, como se sabe, tiveram de ser repetidas, e lá se conseguiu uma coligação encabeçada pela Nova Democracia, do centro-direita. Mas o partido da extrema-esquerda, cujo nome não me dei ao trabalho de reter, voltou a obter o segundo lugar à custa de uma enorme queda dos socialistas democráticos.

Por outras palavras, a experiência grega de um "Governo tecnocrático acima dos partidos" conduziu à dramática erosão dos partidos centrais da democracia grega e à súbita emergência de partidos extremistas até então irrelevantes. Quero acreditar que o mesmo não vai acontecer em Itália, mas seria útil reflectir sobre as razões do fenómeno grego.

Essas razões talvez possam começar a ser identificadas se nos recordarmos de que as soluções grega e italiana simplesmente não seriam possíveis em Inglaterra. Na mais antiga e estável democracia, todos os governos têm de emergir do Parlamento. Este escrúpulo é levado a tal ponto que literalmente todos os membros do Governo têm de ser deputados eleitos.

Não é preciso adoptar o escrúpulo das ilhas britânicas para admitir que talvez exista nele alguma razoabilidade democrática. O Parlamento é a sede da democracia e a gradual emergência da sua centralidade esteve precisamente associada à recusa de governos nomeados pelo rei, sem base parlamentar. Com todo o respeito que tenho pelo senhor Mario Monti, lamento ter de observar que um primeiro-ministro não eleito como ele simplesmente não teria lugar para se sentar na Câmara dos Comuns em Londres - com excepção das galerias destinadas ao público. Com efeito, e não por acaso, não existe "bancada do Governo" nos Comuns. O Governo simplesmente ocupa a primeira fila de uma das bancadas de deputados, de onde necessariamente emergiu.

Na tradição democrática britânica não se discute o "regime" de cada vez que ocorre uma crise política, ou económica, ou o que quer que seja. O regime é, aliás, uma expressão que em Inglaterra não se usa, tal como não se usa a expressão "Revolução". Julgo que, precisamente por estas razões, o tal "regime" inglês perdura desde 1688, tendo adoptado inúmeras reformas, algumas muito profundas, sem nunca precisar de recorrer à "Revolução" ou à "mudança de regime".

As consequências práticas para nós parecem-me bastante simples. Temos um Governo eleito democraticamente e responsável perante o Parlamento. Este pode deixar de o apoiar, ou o próprio Governo pode considerar que deixou de ter condições para governar - situações que seriam de extrema gravidade e altamente indesejáveis. Mas, se ocorressem, o "regime" constitucional português teria soluções que não carecem de ser inventadas: ou o Presidente da República considerava que havia condições para formar outro Governo com deputados do mesmo Parlamento, ou deveria recorrer a novas eleições.

Esta boa doutrina foi exemplarmente aplicada pelo Presidente Mário Soares, em 1987, aquando da queda do Governo minoritário de Cavaco Silva. É surpreendente que essa boa tradição pareça agora esquecida, sobretudo entre alguns dos que a defenderam nessa época.

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