Segurança máxima

Público 2012-10-11 Pedro Lomba

Informam-me do Departamento do Cartão do Cidadão (um nome que, por si só, parece o de um programa de vigilância) que para alterar uma morada pessoal é preciso pagar uma taxa (três euros); receber uma declaração na nova morada que se destina a confirmar a veracidade do pedido; apresentar a referida declaração outra vez no mesmo departamento, acompanhada do papelinho com os códigos secretos do cartão que devemos zelosamente guardar até ao fim dos tempos; pedir a associação da morada ao chip do cartão. Não sei se isto resume todo o processo. Depois, e só depois de concluídas todas estas etapas, o cidadão da República pode oficialmente, em segurança, mudar-se para a residência que decidiu escolher, recebendo ali toda a correspondência (presumivelmente fiscal) que o Estado português se dignar enviar-lhe.

Qual é a principal razão para a tão famigerada burocracia portuguesa? Durante muito tempo achei que a explicação se devia à ineficiência, à complicação e ao atraso das práticas da nossa querida administração. Era um teórico. Era dos ingénuos que achavam que com a modernização tudo seria mais simples e cómodo. Escutava os políticos que, quando não tinham mais nada para nos dizer, ao menos proclamavam uma fé incontida na simplificação e reforma administrativa. Pareciam bem-intencionados. O Simplex e programas aparentados. Menos carimbos, menos registos, menos expedientes. E, sobretudo, mais abertura em fazer um pedido, um requerimento, um aviso e mais celeridade na resposta dos serviços do Estado.

Entretanto, dezenas de novas leis suprimiram uma parte do entulho burocrático. E outras dezenas substituíram, na prática, o entulho que havia por entulho de diferente espécie e feitio. Mas a burocracia não mudou. E porquê? Porque a raiz da burocracia portuguesa não está no primitivismo de procedimentos, mas na desconfiança. Talvez nunca como hoje uma pessoa foi olhada pelo Estado com uma desconfiança tão profunda e tão rude. O mesmo Estado que depende, em última instância, da confiança de todos, olha para o cidadão comum como se ele fosse um fugitivo e um vigarista que até para realizar uma simples mudança de morada precisa de acções de inspecção, nas quais o mesmo cidadão é compelido a participar.

No nosso próprio e paternal interesse? Nem por isso. No Estado de máxima segurança fiscal onde infelizmente vivemos, cada residente precisa de ser rapidamente localizado para continuar a cumprir com regularidade e esmero aquilo que acima de tudo se espera dele: o pagamento de impostos. Por isso, a sua vida pessoal é escrutinada até ao mais ínfimo pormenor. Somos uma cifra, um chip, uma combinação secreta. Somos previamente vigiados para que nada possa escapar.

Percebe-se melhor por que o Estado, apesar da retórica reformista do costume, não tem qualquer interesse em acabar com esta burocracia da desconfiança. A burocracia alimenta-o, sustenta a sua força. O Estado desconfia de nós e nós, em contrapartida, desconfiamos do Estado. É uma espécie de guerra fria no Portugal da depressão repressiva.

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