Pode haver esperança depois dos tempos sombrios?

Público 2012-10-26 José Manuel Fernandes
Estamos num tempo em que o relógio da História começou a rodar ao contrário e não sabemos como lidar com as novas realidades

Há dias em que uma pessoa nem acredita no que ouve. Então não é que Jorge Sampaio, numa das muitas entrevistas que deu a propósito do lançamento da sua biografia, decidiu considerar que a sua inoportuna e lamentável frase sobre haver vida para além do défice era hoje mais actual do que nunca? Compreende-se que uma adolescente como a que beijou o polícia no 15 de Setembro faça declarações a lamentar a existência de dinheiro, escusando-se a explicar, por exemplo, sobre que critério seguiria para trocar laranjas por umas sandálias novas. Já se compreende pior que um antigo Presidente da República insista numa boutade politicamente explosiva que muito ajudou a estragar o debate político e a permitir que nos enfiassem no poço negro onde hoje desesperamos. Bem sei que é de bom tom, em certos sectores da esquerda lunática, duvidar da genuinidade da dívida que pesa sobre o nosso presente e o nosso futuro, mas ver uma figura como Sampaio regressar à desculpabilização do défice quando se sabe que a dívida não é mais do que os défices acumulados de muitos e muitos anos, deixa qualquer um incrédulo. Pelos vistos Mário Soares não estará sozinho: há um outro antigo Presidente que também acha, porventura como achará a rapariguinha dos longos caracóis, que isto do dinheiro (ou do défice, ou da dívida...) não é problema, pode-se sempre mandar imprimir mais notas.

No mesmo dia em que Sampaio voltou à tona, foi conhecida uma importante sondagem. Não a relativa ao próximo Presidente da República ou ao próximo líder do PSD, um tipo de exercício fútil que delicia os corredores da Assembleia e alimenta as especulações das redacções, mas a que revela preferirem os portugueses (82,1%) os "cortes na despesa" ao "aumento de impostos". É uma boa notícia e um sinal de que, após décadas em que só se pedia ao Estado para gastar mais e mais, os cidadãos começam a perceber que isso também implica mais e mais impostos. O problema vem a seguir: cortar sim, mas não na educação nem na saúde, ou seja, não nas áreas onde o Estado gasta a maior parte do dinheiro dos impostos. O que nos conduz a um paradoxo: a população quer um Estado social mas não quer pagá-lo. Ou, se preferirmos, quer um Estado social mais dispendioso do que aquele que os nossos impostos são capazes de pagar. Nisso Vítor Gaspar tem razão. E é por isso que os próximos meses, os próximos anos, vão ser muito duros, pois vai ser preciso chegar a um novo consenso sobre o que queremos que o Estado nos dê e quanto estamos dispostos a pagar. Até lá, não haverá soluções que não sejam muito dolorosas.

Por entre todas estas dificuldades, começa-se a ouvir um discurso que é muito, mas mesmo muito, perigoso. Vem curiosamente de diferentes quadrantes políticos mas converge num ponto: o questionamento da democracia. Por um lado, há quem proclame (Sampaio foi, de novo, e para nossa desgraça, uma dessas vozes) que a austeridade põe em causa a democracia. De acordo com esta tese, tempos difíceis de cortes podem precipitar o fim do regime. Do outro lado, há quem recorde (nalguns casos com angústia, como sucedeu com César das Neves) que a dificuldade em "controlar a despesa pública" pode muito bem ser "um traço estrutural português só resolvido em ditadura". É bem verdade que o nosso passado não é o mais tranquilizador, mas a ideia de que em democracia não se pode impor a austeridade é, em si mesma, uma ideia autoritária, uma ideia que menoriza a capacidade de os eleitores, mesmo rangendo os dentes, escolherem um caminho diferente do que nos encheu de défices e dívidas. Há muitos sectores que alimentam a ideia de que a democracia tem de continuamente entregar aos eleitores uma dose suficiente de prosperidade para que estes não desanimem ou se deixem tentar por autoritarismos. Ora a democracia não é garantia de prosperidade (apesar de ser a melhor forma de governo para assegurar essa prosperidade). As democracias maduras, como as anglo-saxónicas, mostram-nos que é possível viver longos anos de dificuldades, mesmo de dura austeridade, até de chegar ao ponto de enfrentar a catástrofe de uma guerra, sem nunca colocar em causa o regime ou cair na tentação das revoluções. É tempo de interiorizarmos que são democracias assim as que desejamos, e não ir por caminhos onde o discurso sobre a defesa da "democracia social", por exemplo, pode levar-nos a novas formas de autoritarismo.

Na vida das sociedades, a necessidade de mudança chega sempre antes da percepção de que é preciso mudar. A zanga de uma professora primária de 56 anos que, de acordo com o Jornal de Negócios, se queria reformar em 2013 e já não vai poder fazê-lo é um bom exemplo disso. Apesar de ter 35 anos de serviço, essa professora tem hoje a esperança (estatística) de viver mais 25 a 30 anos. Se se reformasse já, com a reforma por inteiro, o sistema ter-lhe-ia de pagar pensões durante quase tanto tempo como aquele que teve de vida activa, o que nunca será sustentável. Apesar de conhecermos os dados da esperança de vida, apesar de todos dizerem que aqueles que têm hoje 30 ou 35 anos nunca receberão senão um pequena fracção do que essa professora um dia receberá, o seu "drama" foi notícia de jornal. Nada de grave, mas muito de revelador: criaram-se expectativas que a economia e a demografia já não conseguem suportar e muito poucos são capazes de antecipar os problemas futuros (ou até os problemas presentes) e falar com clareza. Durante muitas décadas, a evolução das sociedades permitiu, no Ocidente desenvolvido, que, ao longo da vida, se fossem quase sempre superando as expectativas, agora estamos num tempo em que o relógio da História começou a rodar ao contrário e não sabemos como lidar com as novas realidades. É por isso que Portugal não deve, não pode, sonhar sair do poço para regressar ao tempo falsamente luminoso de há 10, 15 anos. Quando virmos a luz ao fundo do túnel será uma luz diferente e um quotidiano mais modesto, mas não obrigatoriamente pior.

Até há 200 anos, nenhuma sociedade conseguira crescer mais de um por cento ao ano por um período longo. E apenas viviam mil milhões de humanos no planeta (hoje somos sete mil milhões). Depois, primeiro em países como o Reino Unido, a Alemanha, a Suíça, os Estados Unidos ou o Canadá, a seguir em todo o Ocidente, mais recentemente a uma escala quase global, assistimos a um ritmo de desenvolvimento que permitiu que centenas de milhões de cidadãos das classes médias vivam hoje com mais conforto (mas menos luxo) do que os Crawley de Downton Abbey. Este milagre talvez não se possa projectar para a eternidade e temos de estar preparados para isso. No mundo desenvolvido, já desapareceu a capacidade de crescer em número de habitantes e está agora a desaparecer a capacidade de crescer economicamente. Ainda há pouco tempo, Martin Wolf, do Financial Times, dedicou uma das suas crónicas ao fim do crescimento ilimitado. Acontece, porém, que sistemas políticos e sociais desenhados para crescimentos sustentados de três por cento ao ano têm hoje de ser repensados para crescimentos anémicos de apenas um por cento, ou menos, como os que foram regra até há 200 anos. É isto que está a acontecer à nossa frente e ainda nos recusamos a acreditar, mas o mais provável (até por razões ambientais) é que nunca regressemos aos ritmos de crescimento que permitiam sustentar os nossos estados sociais e dívidas gigantescas. Não é dramático que isso aconteça se soubermos recalibrar os nossos hábitos e modos de vida. Afinal, para se ser da "classe média", talvez não seja necessário ter um bom automóvel, uma segunda habitação e passar férias no estrangeiro. Para termos esperança depois destes dias sombrios temos de começar a tentar perceber que estamos a entrar num outro tempo, e adaptarmos as nossas expectativas. Keynes tinha previsto que o aumento da produtividade levaria a que se trabalhassem menos horas para manter a qualidade de vida, mas as sociedades preferiram enriquecer e consumir. Talvez neste caso seja caso para escutar o conselho de Keynes.

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