O que eu faria com os 336 mil euros de Catarina Furtado

Henrique Raposo (www.expresso.pt)
7:42 Quinta feira, 25 de outubro de 2012
Devido à fraca qualidade do autor do costume, a gerência de "A Tempo e a Desmodo" abriu uma nova secção: os convidados. O convidado desta semana é Alexandre Borges, guionista, autor da série documental "Os Santos de Portugal".
Fará algum sentido, em qualquer momento, mas particularmente neste, que o contribuinte pague mais ao apresentador de "O Preço Certo Em Euros" do que ao primeiro-ministro? Será, digam-me, mais difícil apresentar a "Praça da Alegria" do que ser ministro das Finanças, entalado entre a troika e as manifs? E Catarina Furtado - pelo que diz a imprensa, a apresentadora mais bem paga da RTP - aceitou uma redução salarial de 20% em Junho. Significa isso que vai passar de 30 mil para 24 mil euros mensais. (Respiremos fundo.) Não está em causa se Catarina merece tal ordenado (tive o grato prazer de trabalhar com ela e posso, caro leitor, atestar do seu profissionalismo. E sim, é ainda mais bonita ao vivo). Está em causa se deve ser o contribuinte a pagá-lo.
Não há qualquer razão para que o cidadão-enquanto-contribuinte sustente uma guerra de audiências desprovida de qualquer sentido entre sector público e privado, particularmente se tivermos em conta que o cidadão-enquanto-telespectador poderá continuar a desfrutar dos talentos de Jorge Gabriel, Fernando Mendes ou Catarina Furtado numa SIC ou numa TVI, que terão o maior prazer em oferecer-lhes os ordenados que os accionistas quiserem e bem entenderem.
E que faríamos ao dinheiro poupado? Documentários, magazines culturais e de interesse social, grandes reportagens, programação pedagógica para crianças e jovens, uma selecção de filmes essenciais, uma grelha que poderia e deveria ser articulada com os planos de leitura e cinema do Ministério da Educação e da Secretaria de Estado da Cultura.
Falar é fácil, dirá. E estará correcto - não se programa uma estação de televisão numa modesta coluna de jornal. Mas, para que tenha uma ideia, o custo médio de um documentário para a RTP2 rondou, nos últimos anos, 10 mil euros. 10 mil. Os 336 mil euros anuais do novo ordenado de Catarina Furtado dariam para 33 documentários, sendo que o último se poderia estragar com um orçamento de 16 mil loucos euros. Se a bitola for o antigo ordenado de Catarina, então teríamos 420 mil euros anuais = 42 documentários. "Sociedade Civil", o magazine-emblema da 2 que, há seis anos, junta mais de 120 organizações da dita sociedade, não custa muito mais do que isso. De segunda a sexta-feira, durante um ano inteiro. Para pagar apresentadora, realizador, jornalistas, produtores, técnicos, meios, tudo.
Muito antes de falar em privatizar ou não a RTP, devemos, pois, pensar que RTP queremos ter, tendo em conta o serviço público que deve prestar e aquilo que podemos pagar por ele. Para além de uma longuíssima lista de instituições da sociedade civil que podem contribuir com meios, preocupações e conhecimento, há uma geração de brilhantes documentaristas portugueses - brilhantes mesmo - que seria criminoso ignorar numa nova RTP: Miguel Gonçalves Mendes, Gonçalo Tocha, José Filipe Costa, Marta Pessoa, Graça Castanheira - só para citar alguns. Há um país ainda grandemente iliterato para quem o serviço público de televisão deve trabalhar. Há centenas de milhar de jovens e crianças que se podem educar, de forma mais económica e eficaz, com o auxílio da RTP. Há um público que quer ver televisão em Português, para além dos reality-shows, dos programas ditos de entretenimento e da informação mastigada até à náusea por um exército de comentadores.
E há, finalmente, um trabalho que Jorge Wemans operou, nos últimos sete anos, na discrição da RTP2 (e que vem de longe, se quisermos lembrar, por exemplo, Fernando Lopes) e que seria completamente estúpido deitar ao lixo.

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