A democracia e a despesa

Público 2012-10-23  Pedro Lomba

João César das Neves escreveu ontem um artigo no Diário de Notícias em que proclamava a quase impossibilidade de conter a despesa pública em democracia. As crises do passado ensinam-nos alguma coisa sobre o assunto. Mas não é o passado que nos ajuda a compreender a democracia portuguesa na sua vocação para a barganha despesista. César das Neves explicava porquê: "o poder político dos grupos à volta do Estado é maior que o poder político dos contribuintes. Quem recebe está mais perto do que quem paga e isso faz toda a diferença".

Isto escandalizou algumas almas sensíveis que acusaram o homem de ser um teólogo do regresso à ditadura. Mas não se vê como. A ditadura é aqui um fantasma irrelevante. Queiramos ou não, estaremos sempre obrigados a reduzir a despesa por obrigação externa. Estamos ocupados. Não existe força pior e mais impositiva do que aquela que vem do exterior. Equivale a uma ocupação. Aquilo em que não nos pusemos de acordo é no tipo de despesa em que devemos cortar. Ou decidimos por nós, ou decidem por nós. Sobre isto, ainda reina o silêncio.

Mas o que isto também demonstra é que não sabemos muito sobre a nossas democracia. Continuamos a imaginar uma democracia ideal e intemporal em que todos podem votar, todos têm direito a direitos, todos participam e fazem ouvir a sua voz. Ora, César das Neves está a dizer uma coisa óbvia que muita gente anda a repetir há muito tempo. Essa democracia ideal é inseparável da forma como uma pletora de grupos sociais cimentou o seu poder de influência e protesto junto do Estado.

O verdadeiro poder que a democracia nos trouxe não foi o voto. Foi o poder bem distribuído, tanto em "cima" como em "baixo", de acesso ao Estado. Foi o poder de reivindicação. Acedemos ao Estado como consumidores de bens, como utentes, como clientes, como amigos políticos, como parceiros, como titulares de um poder mais formalizado ou mais difuso de reivindicação. É verdade para as empresas e para os trabalhadores. É verdade para quem pode, para quem se organiza, para quem tem meios de reivindicar.

É natural que a democracia gere despesa. Como é natural que a democracia dependa dessa despesa. Mas do que se trata aqui é que, na democracia real de um país chamado Portugal, a despesa torna-se quase inamovível porque o partido que exerce o seu poder reivindicativo no interior do Estado é mais forte do que o partido minoritário que não goza da mesma influência. O partido maioritário criou os seus próprios políticos, os seus órgãos de informação, os seus meios de combate; o partido minoritário não gerou nada disso.

Quando o PSD ganhou as eleições, lembro-me que um antigo membro do PCP escreveu nos jornais que a direita tinha agora uma maioria eleitoral, não uma maioria social. Na altura pareceu-me uma bizarra concepção da democracia. Agora vejo que ele tinha alguma razão. Porquê? Boa pergunta. Porque, no fundo, a direita não deixou de olhar para a política como administração do Estado e nunca deixou de se ver a si mesma como um interesse dependente dessa boa administração dos interesses que giram à voltam do Estado. Nunca foi para além disto. E o partido minoritário permaneceu minoritário, sem força, sem o poder democrático de reivindicar.

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