O país das televisões está sempre à beira de um ataque de nervos

Público 2012-10-12  José Manuel Fernandes
Tudo em Portugal parece ser julgado em função da excitação que causa e dos microfones que atrai

Esta semana fui contactado por um órgão de informação para comentar umas declarações do Presidente da República. Pedi uns minutos para as ir ler. Pareceu-me então que os títulos podiam induzir em erro, mas quando expliquei que estava a ser feita uma leitura errada das palavras de Cavaco Silva, percebi que estava a desapontar o meu interlocutor. Afinal, eu não estava a sublinhar a "narrativa" dominante, não estava a seguir o guião-padrão do comentador.

Este episódio não vale nada - só que é revelador. Quem segue com atenção o fluxo das notícias percebe como boa parte do que chega aos noticiários televisivos e radiofónicos são excitações sucessivas alimentadas por uma cacofonia de vozes que repete mais ou menos o mesmo, seja qual for o órgão de informação. Nos noticiários televisivos chega a ser aflitivo. O país parece feito de pessoas apanhadas a sair ou a entrar para uma sala a quem se arrancam umas declarações que raramente ultrapassam a dimensão do sound-byte. A seguir, os comentadores encarregam-se de esmiuçar essas declarações e, no dia seguinte, muda-se de tema. É frequentíssimo ouvirmos declarações e até assistirmos a debates onde se assume que, por exemplo, não se conhece ou não se leu o que está a ser discutido. E isso é feito sem que ninguém pareça incomodado.

O que resulta deste ambiente comunicacional é um país permanentemente à beira de um ataque de nervos, um espaço público onde as matilhas saltam de assunto em assunto e de preconceito em preconceito, e uma cidadania constantemente menorizada. Nenhum assunto sério resiste a este tipo de tratamento. Nenhum debate, por mais importante e necessário que seja, sobrevive ao choque indignado de meia dúzia de ideias feitas.

Um bom exemplo deste estado de coisas foi o do debate - se é que chegou a haver debate - sobre o parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida sobre racionamento na área da saúde. E digo bem quando digo racionamento, e não pudicamente "racionalização", pois o que está em causa, em Portugal como em todo o mundo desenvolvido, é um debate sobre racionamento. O facto de termos consumido boa parte do tempo a considerar que tinha sido apenas uma escolha errada de palavras diz muito sobre o preconceito vigente e sobre a nossa endémica incapacidade de encararmos um tema importante para o nosso futuro. Ou seja, ao mesmo tempo que as mais emproadas figuras aconselham, com ar severo e superior, o Governo a "repensar as funções do Estado", uma turbamulta alimentada pelo populismo e pela ignorância impedia que se começasse sequer a pensar até onde pode o Estado ir na garantia de cuidados de saúde. Às vezes com as mesmas figuras emproadas à frente.

Este debate não é recente nem é português. Há muito tempo - pelos menos duas décadas - que se começou a perceber que o sucesso da ciência médica trazia com ele um dilema: como suportar os custos crescentes? O principal factor que contribuiu para o aumento desses custos é o próprio desenvolvimento da ciência. Há medicamentos cada vez mais caros - um dos fármacos mais sofisticados de tratamento do cancro requer mais de 400 mil euros/ano por doente -, há terapias cada vez mais dispendiosas e estão sempre a aparecer novos meios complementares de diagnóstico. Para além disso, a população está a ficar mais idosa.

Não era preciso vivermos em situação de crise para o problema da evolução dos custos com saúde se colocar. A não ser que pensemos que os recursos são ilimitados - ilimitados para a saúde, ilimitados para a educação, ilimitados para as prestações sociais -, haverá sempre que debater a forma de conter uma escalada que a economia portuguesa, mesmo pujante, nunca conseguirá comportar. Isso mesmo começaram a fazer outros países, alguns deles bem mais ricos do que Portugal, e já há vários anos.

Julgo que não haverá um só médico que não conheça este problema e que não saiba que há um debate por fazer. Mas poucos têm tido coragem de o assumir. Um dos poucos que o fizeram foi, há uns meses, Manuel Sobrinho Simões num debate na SIC Notícias. Foi ele que aí usou a palavra racionamento pela primeira vez, para horror da jornalista que moderava a emissão. O debate, no entanto, nem chegou a começar, pois as atenções foram logo desviadas para uma frase sobre hemodiálise de uma das outras pessoas presentes, Manuela Ferreira Leite. O foguetório durou algumas horas e foi depois devidamente enterrado pela cultura jornalística dominante.

Fiquei, contudo, alerta para o problema e, como responsável de uma revista que tem como objecto a promoção do debate de ideias, a XXI, Ter Opinião, anuário da Fundação Francisco Manuel dos Santos, pedi a um especialista, Pedro Pita Barros, um artigo sobre o tema. Esse texto - "Racionamento em Saúde: inevitável realidade?" - sairá na edição que chegará às bancas no final deste mês, mas entretanto já está disponível no portal da fundação, precisamente para ajudar a fundamentar o debate público. Recomendo a sua leitura, pois é uma peça bem fundamentada que enquadra os problemas éticos no constrangimento económico e fornece uma perspectiva sobre o ponto do debate, e das medidas já tomadas, noutros países.

Os dilemas éticos são, naturalmente, tremendos. Por exemplo, "deverá ser valorizado o acréscimo na longevidade, independentemente da qualidade de vida, ou deverá o objectivo ser maximizar os anos de vida com qualidade?" Outro exemplo: se se quiser "maximizar o bem-estar social", será que "na escolha de distribuição dos recursos por grupos de idades diferentes se deve atribuir prioridade às populações mais jovens, uma vez que, em média, o benefício de receber tratamento é maior (maior longevidade obtida)"?

O contributo para este debate do parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida é indiscutivelmente importante, mesmo permanecendo muitas questões em aberto. Mais: esse parecer, ao falar de racionamento, não está a falar de racionalização, isto é, não está a falar de evitar o desperdício ou utilizar melhor os recursos disponíveis, está a estabelecer critérios para a utilização de recursos escassos. Como o conselho escreveu, podemos optar por manter a situação actual - em que já existe um racionamento implícito em muitos serviços, sem critérios transparentes e conhecidos - ou preferir encarar o problema e tentar estabelecer um consenso social sobre o que é tolerável e mesmo necessário, e aquilo que não queremos deixar de pagar em cuidados de saúde, mesmo que isso implique gastar menos noutras áreas.

Quando o parecer foi conhecido, o espaço público encheu-se de condenações sumárias, desde as de um António Arnaut que admitiu nem o ter lido, até às de um bastonário que quer desencadear uma fronda contra os médicos que o subscreveram. No meio da vozearia quase nada se ouviu de sensato - talvez mesmo a única notícia ponderada e informada que eu tenha lido em toda a imprensa portuguesa tenha sido a que saiu neste jornal e, depois, uma entrevista a um especialista no Expresso. A tendência para retratar um país sempre à beira de um ataque de nervos onde legiões de indignados se aprestam a rasgar as vestes em defesa nem se sabe bem de quê sobrepôs-se a tudo o resto.

O essencial, neste como em tantos outros debates públicos, perdeu-se. E o essencial, como escreve Pedro Pita Barros, é que "o que está hoje para discussão não é se há ou não racionamento, mas sim a forma como é determinado e quem decide sobre os seus aspectos fundamentais" Ou seja, que "a sociedade necessita de clarificar os seus valores, para que os profissionais da área da saúde se possam guiar por eles".

Em Portugal, todos gostam de dizer que não são culpados. Gostaria agora de saber quem é que não tem culpa de ter torpedeado este debate importante. Ou de transformar em discussões maniqueístas muitos outros debates cruciais para o nosso futuro. É que é bom não esquecer como em Portugal também não se quis discutir decentemente, anos a fio, temas como a dívida ou as auto-estradas. Entre outros.

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