Os pobres de Estado

PÚBLICO, 23.07.2008, Rui Ramos
Hoje, os pobres são uma espécie de cobaias com que os burocratas e pensadores fazem as suas experiências sociológicas
Ovelho génio nacional não conhece limites. Foi o que se provou mais uma vez com o caso da Quinta da Fonte, em Loures. Por toda a Europa, os chamados "bairros sociais e degradados" ("barris de pólvora", segundo o cliché) são origem regular de notícias e imagens de violência. Em Portugal, porém, há remédio para tudo. A inteligência indígena detectou logo a causa do problema: a concentração das "minorias" pobres no mesmo bairro. E ainda mais rapidamente descobriu a solução: dispersar e diluir as ditas "minorias" pelos outros bairros da cidade. O método é, no fundo, escolar: uma vez que os meninos se portam mal quando estão uns com os outros, vamos sentá-los em carteiras separadas, para que não tenham parceiros com quem se distrair. Não é bom viver num país onde tudo é tão simples?Na Índia, segundo a velha história, Afonso de Albuquerque liquidou uns fumos de apartheid forçando casamentos mistos. Hoje, os seus descendentes contentam--se, até ver, com a "miscigenação" residencial. Não me atrevo, como é óbvio, a contrariar uma sabedoria com tantos adeptos. Há, no entanto, uma pergunta que naturalmente ocorre: porque não tentar atingir o mesmo efeito de "mistura social" deslocando as classes médias dos seus condomínios para a Quinta da Fonte ou para a Cova da Moura? Responder-me-ão: porque se recusariam a ir e não se pode obrigá-las. O que, precisamente, não se passa com os pobres: a esses é possível obrigar, como estão a descobrir os refugiados da Quinta da Fonte. Os pobres dependem do Estado. Em troca de casa e de subsídios, encontram-se à mercê dos funcionários, que os controlam e os colocam onde bem entendem, e dos "especialistas", que os estudam e decidem o que mais lhes convém. E nada disto, curiosamente, parece perturbar os patronos da pobreza.Os pobres, no actual regime social, são o que a discussão à volta da Quinta da Fonte revelou: uma espécie de cobaias com que os burocratas e pensadores do Estado Social fazem as suas experiências sociológicas. Um dia, apetece-lhes concentrá-los todos no mesmo bairro, desenhado de uma forma peculiar por um arquitecto progressista; no outro dia, ocorre-lhes que afinal o melhor é dispersá-los pela cidade, "como antigamente", recorrendo às casas devolutas; num dia, resolvem preservar-lhes as identidades e culturas de origem, porque tentar "assimilá-los" seria racismo; no outro dia, decidem sujeitá-los aos "valores comuns da cidadania", porque reconhecer-lhes distinções "étnicas" é que é verdadeiramente racismo; num dia, retiram-lhes a polícia da rua, para evitar "provocações"; no outro, impõem-lhes o "policiamento de proximidade". E por aí fora, sempre em ziguezague. Eis a tragédia da pobreza: em troca do alívio público das suas carências, milhares de famílias tornaram-se carne para os canhões burocráticos e intelectuais do Estado Social.Noutras sociedades, os "pobres" eram frequentemente aqueles que estavam "de fora": no nosso regime social, ao contrário, não há ninguém mais "marcado" pelo poder, através da polícia e da assistência. Ora, o episódio da Quinta da Fonte mostrou que um dos problemas dos pobres é o seu mestre e senhor, o Estado Social, ainda não ter decidido que fazer deles. Concentrá-los, ou distribuí-los? Reconhecer-lhes o direito a identidades próprias e a viver em comunidades separadas, ou atomizá-los e apagar-lhes as diferenças, convertendo-os numa massa invisível? As modas mudam regularmente, conforme o último vento a soprar nos ministérios e departamentos universitários. Este ano, como em anteriores, o que está a dar é a "integração", de que se fala com o fervor que os antigos ideólogos do colonialismo nacional dedicavam à "assimilação". A magia da palavra faz esquecer que se há algo que caracteriza estes pobres é precisamente o de já se encontrarem "integrados" - no Estado Social. Sempre para bem deles?Já muita gente perguntou se essa "integração", ao cultivar a dependência do Estado, não acaba por prender famílias e indivíduos no gueto e na marginalidade donde é suposto estarem a ser resgatadas. Mas os procuradores do Estado Social recusam qualquer alternativa que exija esforço e responsabilidade pessoal aos "seus" pobres. Convém-lhes mantê-los com o estatuto de puras "vítimas", sem culpa nem consciência. É assim mais fácil usá-los como material de arremesso no confronto ideológico, e sobretudo justificar o aparato que visa "protegê-los" como se fossem menores. Entretanto, num jardim de Loures, uma meia centena de famílias espera que o Estado, que as tem por conta, resolva o que vai ser a vida delas.

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