A prisão de Karadzic, ou a coragem de preferir a verdade e a liberdade

PÚBLICO, 23.07.2008, José Manuel Fernandes
É tempo de os sérvios enfrentarem Srebrenica e compreenderem que os criminosos de guerra não são nem heróis nem monstros, antes homens cuja sede de poder os levou a escolher os caminhos do mal absoluto
Radovan Karadzic, lia-se ontem num comentário no publico.pt, bem podia passar pelo Pai Natal. Com as suas longas barbas brancas, o cabelo também longo e branco, os olhos escuros e quase tristes, o antigo líder dos sérvios da Bósnia mais pareceria uma figura angelical do que um criminoso de guerra. O homem que, sob um nome falso, dava consultas numa clínica de Belgrado é um dos principais responsáveis por uma guerra genocida de que resultaram mais de 100 mil mortos. Desses, oito mil foram mortos a sangue- -frio há quase exactamente 13 anos nos arredores de Srebrenica.Assim: "Depois da primeira vez, Drazen disparou várias outras vezes a intervalos de minutos, sem pensar muito no que estava a fazer. A única coisa que fazia conscientemente era tentar apontar a idosos e não a homens novos. Parecia-lhe um desperdício menor. Em pouco tempo, a camioneta ficou vazia. Quando olhou para o relógio, Drazen sentiu-se chocado: tinham levado apenas um quarto de hora a executar cerca de 60 pessoas."Este relato, retirado do livro Não Faziam mal a Uma Mosca, da jornalista e escritora Slavenka Drakulic e recentemente editado em Portugal, apenas entreabre as portas para os horrores que a autora viu serem descritos durante as sessões do Tribunal Penal Internacional para os Crimes de Guerra na ex-jugoslávia. E Drazen Erdemovic, que tinha apenas 24 anos à altura dos acontecimentos, é um dos criminosos que saiu com uma das penas mais leves porque colaborou com a justiça. Mas se isso o distinguiu da maioria dos que foram julgados em Haia, algo o aproximava de todos: nada, na sua vida anterior à guerra, fazia prever que um dia cometesse atrocidades. Ou até que servisse no exército da chamada Republica Srpska, para onde entrou apenas porque estava desempregado e acabara de ser pai.E que dizer de Goran Jelisic, alguém com "ar de ser uma pessoa em que se pode confiar", como escreve Slavenka, mas que terá executado, a sangue-frio, um milhar de prisioneiros, muitos deles antes do pequeno-almoço, de quase todos eles fazendo uma cuidadosa contabilidade de que se gabava? Ou então de Kunarac, Kovak e Vukovic, todos condenados por terem maltratado, torturado, violado e oferecido para violação dezenas de jovens mulheres muçulmanas em Foca, uma vila nas montanhas da Bósnia, e que ainda não devem ter compreendido porque foram condenados e não podem simplesmente "estar na rua principal, fumando, bebendo aguardente e contando histórias de guerra"? Ou ainda de Radislav Krstic, um dos generais que cumpriu as ordens do comandante supremo do exército dos sérvios da Bósnia, Mladic, durante o assalto e os massacres de Srebrenica, alguém que se via a si mesmo apenas como um soldado profissional e íntegro, que cumpria ordens? Ou, por fim, de Biljana Plavsic, professora de Biologia, bolseira numa universidade americana, mas que pisou o cadáver de uma das vítimas do temível Arkan para, de forma quase cenográfica, o abraçar, alguém que, no tribunal, usava metáforas "científicas" para justificar o genocídio, como a de os muçulmanos seriam "um erro genético no organismo sérvio"?Karadzic, o "inofensivo Pai Natal", era só o instigador de todos eles. Karadzic e o seu companheiro, e depois rival, Ratko Mladic, o chefe do exército. E também quando, no início dos anos de 1990, ascendeu à liderança dos sérvios da Bósnia, e dificilmente se poderia imaginar que alguém que nascera numa família pobre do Montenegro rural conseguiria singrar na vida até se tornar num psiquiatra e poeta respeitado de Sarajevo, poucos imaginavam que aquele homem de rosto ameno e cabelos grisalhos e revoltos incitaria os seus às maiores barbaridades. Como Slavenka Drakulic reflecte num texto escrito ontem, para a revista The Nation, considerar que ele é apenas "um monstro" é não compreender que isso é a forma mais fácil de fugirmos à ideia terrível de que todos nós podemos, um dia, cometer atrocidades. "Não são monstros", escreve Drakulic. "Os seres humanos têm a capacidade de fazer o bem e o mal. Mas também têm a capacidade de escolher." É ao escolherem que fazem a diferença.Por Haia passaram académicos e motoristas de táxi, mecânicos e empregados bancários, intelectuais e camponeses, e os que foram condenados foram-no por terem feito as escolhas erradas - mesmo quando se afirmavam inocentes e garantiam não ter tido escolha. Claro que tinham, se não tivessem ao mesmo tempo a ilusão que a orgia de violência era o caminho, para à escala de cada um sentirem a ilusão do poder absoluto - e que poder é mais absoluto do que decidir sobre se um homem vive ou morre?Também por isso é tão importante o que aconteceu segunda-feira na Sérvia: um governo democrático ter escolhido cumprir a lei, ter dado ordens e fornecido os meios para que um dos derradeiros heróis sagrados dos radicais sérvios fosse detido e entregue à justiça. Durante os últimos 15 anos outros governos e outros poderes tiveram a possibilidade de fazer a mesma escolha e não a fizeram, permitindo que o homem que se deliciava com o espectáculo das bombas a cair sobre Sarajevo continuasse à solta. Este Governo pró-europeu fez a escolha certa e não apenas porque teria de a fazer mais cedo ou mais tarde, se quisesse continuar a aproximar o seu país da União Europeia. Este Governo de Belgrado fez a escolha certa porque teve a coragem de ser livre, de se libertar dos mitos e dos fantasmas do passado do seu país. Mais: teve a coragem de enfrentar esse passado em nome da verdade e da justiça.

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