Um desperdício de latim

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João Távora, 26 Mar 2012

É o mundo virado ao contrário, um triste destino de colonizados para o qual não há rating que nos safe do default. E discutem-se consoantes mudas como se não houvesse amanhã
O bom do português quando usa uma palavra estrangeira sente-se moderno, cosmopolita e dono duma grande ciência. Para já, com o acordo com a troika, o secreto orgulho vivido pelos políticos que tão galhardamente defendiam as golden shares tem os dias contados. Certamente o conveniente preceito teria passado ao lado se lhe tivéssemos chamado simplesmente "participação decisiva" ou coisa parecida. É a mania das grandezas: Golden Share tem outro sainete, mas acabou-se. É tal e qual um test drive, que afinal se trata de uma inigualável experiência de condução exclusiva de quem se prepara para enterrar uma pipa de massa num automóvel.
A grande invasão dos anglicismos começou de mansinho no tempo dos meus pais com os filmes de cowboys e com o after shave, até chegar dominadora e despótica aos dias de hoje com o outlet, o underground e o casamento gay.
Subitamente toda a gente se refere a downloads, feedback e barbecue, e gaba-se de ter um account que lhe cobra as taxas na conta bancária. E se lhe dermos conversa ouviremos termos como pricing e banking. Para mim, este delírio começou quando eu era pequeno com a baby sitter, o mais das vezes
uma parente mais velha que nos fechava às escuras no quarto às dez da noite.
Daí até ao check in, check out ou cheeseburguer foi um saltinho. Tudo por culpa do marketing que no tempo do meu avô era simples propaganda, uma palavra tão bonita que já ninguém quer usar. E vieram os personal trainer, os deadlines e os franchisings. Claro que entretanto subiram as taxas de divórcios e o consumo de donuts, para desgraça das bolas de Berlim. De caminho, o pessoal obteve um upgrade nas fórmulas de percepção com o conceituado feeling que veio substituir o nosso tradicional dedo que
adivinha: hoje qualquer tuga que se preze pode decidir baseado num bom feeling.
Nos últimos tempos, depois do car jacking, são o rating e o downgrade que trazem um toque extra de requinte ao linguajar indígena, tal como acontecera nos anos noventa com os interfaces, os shoppings e o jogging, um singular desporto que consiste em correr a arfar pelas ruas ou caminhos. Agora não
sabemos viver sem a internet, os mass media, os overbookings e os pacemakers. Hoje em dia até os pescadores são vítimas de phishing, e para nos livrarmos duma newsletter no email é uma carga de trabalhos; uma miúda gira é uma top model e é provável que até use um piercing.
É o mundo virado ao contrário, um triste destino de colonizados para o qual não há rating que nos safe do default. Enquanto isto se passa discutem-se as consoantes mudas e o imperialismo brasileiro como se não houvesse amanhã.
Consultor de comunicação



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