Exegese de uma aparição em Albufeira

P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Observador 20151107

Aos governantes não se pedem sermões sobre os humores divinos, ou a natureza celestial ou diabólica das tempestades, mas que saibam agir em prol do bem comum.

Não caíram o Carmo e a Trindade, mas caiu uma tromba de água, ou coisa parecida, lá para as bandas de Albufeira, no Algarve. Tamanha calamidade requereu a presença no local do recém-empossado ministro da Administração Interna que, não satisfeito com a desgraça que se abateu sobre essa povoação algarvia, mais habituada às enchentes de turistas do que às de águas pluviais, emitiu um juízo religioso, que mereceu bastas críticas na comunicação social, pouco dada a leituras teocráticas das intempéries meteorológicas.
Para além de algumas referências à conveniência de acautelar os estabelecimentos comerciais com seguros, o ministro teceu também considerações sobre Deus e a sua amizade e inimizade com os homens, sobre as provações a que estes são submetidos, as fúrias naturais e demoníacas, etc. Conceitos teológicos que não são correntes no linguajar dos governantes deste país laico, republicano e, ao que parece, a caminho do socialismo (cuja chegada, segundo alguns politólogos, deve acontecer na semana que vem).
São muito de lamentar os avultados prejuízos materiais e, sobretudo, a perda de uma vida humana, e de saudar que um membro do governo se tenha deslocado à região afectada. É louvável a prioridade dada à família enlutada, que o ministro fez questão de cumprimentar, referindo-se, com a maior consideração, à vítima mortal: “entregou-se a Deus e Deus com certeza que lhe reserva um lugar adequado” (Público, 3-11-2015).
Não é habitual uma menção explícita a Deus nas alocuções governamentais ou parlamentares. Há, até, um certo pudor em referir tão directamente o Criador, talvez pelo escrúpulo religioso de não usar o seu santo nome em vão, como manda o segundo mandamento da lei de Deus, ou, mais provavelmente, por se entender que não faz sentido misturar a res pública com a res sacra, segundo um muito comum preconceito laicista.
Não repugna que, em actos de especial solenidade, Deus possa ser formalmente invocado, como fazem os presidentes dos Estados Unidos da América quando juram o seu cargo. Mas não seria razoável essa invocação em relação a questões políticas opináveis, ou para explicar certos fenómenos naturais. Já lá vai o tempo em que os monarcas, por uma enviesada hermenêutica das palavras de Cristo a Pôncio Pilatos, se consideravam titulares de um direito divino.
O ministro aparecido em Albufeira fez ainda outras declarações especulativas: “A fúria da natureza não foi nossa amiga. Deus nem sempre é amigo. Também acha que de vez em quando nos dá uns períodos  de provação. Em quase todo o lado, excepto em Albufeira, o nível autárquico foi suficiente de acordo com as medidas. E só não foi suficiente aqui em Albufeira porque a força da natureza, na fúria demoníaca, embora os ingleses digam que é um acto de Deus, um ‘act of God’, a gente tem de traduzir de outra maneira …” (id.).
Primeiro, fala da “fúria da natureza” e da sua pretensa inimizade com o género humano em geral e, em particular, com os algarvios. (Teria sido interessante que o senhor ministro tivesse explicado por que carga de água – nunca melhor dito! – a natureza se zangou com os habitantes de Albufeira …). Depois, transfere a titularidade da acção destruidora para Deus que, pelos vistos, “nem sempre é amigo”, e que “acha” que, de vez em quando, nos deve dar “uns períodos de provação” (será isto uma velada alusão a este governo … ou ao próximo?!). Num último e surpreendente desenvolvimento teológico, admite que a acção tenha sido diabólica – “fúria demoníaca” – para depois concluir que foi tudo um acto de Deus, ou talvez não …
Que o homem pré-histórico dissesse, cada vez que trovejava, que era Deus que estava furioso, era compreensível, tendo em conta a sua ignorância científica e religiosa. Continua a ser verdade, não apenas para os crentes mas para quem tenha um discurso filosófico coerente, pois tudo o que acontece, na ordem natural, tem a Deus por sua causa última. Porém, o que se pede aos cientistas e aos políticos é que, sem desmentirem essa explicação metafísica, saibam, respectivamente, reconhecer as causas próximas dos fenómenos naturais e agir em consequência. Por isso, a um astrónomo cristão não compete dizer que as galáxias existem porque Deus quer, o que é por demais óbvio, mas conhecê-las e explicá-las cientificamente.
De modo análogo, aos governantes não se pedem sermões sobre os humores divinos, nem sobre a natureza celestial ou diabólica das tempestades, mas que saibam actuar, nessas circunstâncias, da forma mais adequada ao bem comum. Como fez o Marquês de Pombal que, em vez de perorar sobre as causas transcendentes do terramoto de 1755, por sinal em data coincidente com as cheias no Algarve, providenciou para que se enterrassem os mortos e se cuidasse dos vivos.
Permanece vigente o princípio evangélico que, contrariando tanto o clericalismo como o laicismo, ensina que se deve dar a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. Sem confusões, nem exclusões. Quer o actual executivo, quer o próximo, são, apenas e tão só, governos humanos. Não são nenhuma bênção divina, nem – felizmente! – nenhuma maldição diabólica …

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