Tomara fosse um poucochinho alemão

25 Novembro 2015, 20:35 por Eva Gaspar | egaspar@negocios.pt

Faz agora dez anos que Angela Merkel é chanceler da Alemanha. Ao longo desta década, nunca o seu partido – a CDU, que se apresenta nas eleições federais coligada com a CSU (os conservadores da Baviera) – obteve maioria absoluta.
Partiu para este terceiro mandato com o melhor resultado de sempre, 41,5% dos votos, mas ficou a cinco lugares da maioria no Bundestag. Como os liberais do FDP, com quem anteriormente governara, não elegeram qualquer deputado porque ficaram aquém do limiar de 5% de votos, desde as eleições de 22 de Setembro de 2013 que existe uma "maioria de esquerda" no parlamento alemão.
O SPD – da mesma família europeia do PS português – foi o segundo partido mais votado (25,7%) e poderia ter tentado fazer uma coligação à sua esquerda. Sigmar Gabriel, seu líder, seria hoje o chanceler da Alemanha, não obstante ter sido um dos derrotados nas urnas. Não ousou fazê-lo porque isso significaria mais do que uma aliança natural com os Verdes (que lá têm pensamento estruturado e uma agenda política que vai muitíssimo além do Ambiente), mas também governar ao lado de quem vê legitimamente o mundo com outros olhos: do Die Linke, uma espécie de Bloco de Esquerda alemão, também eurocéptico e anti-NATO.
Em 17 de Outubro, 25 dias depois das eleições e após três encontros exploratórios, o SPD anunciava que talvez fosse possível voltar a integrar o que chamaríamos de "bloco central" com a CDU/CSU, como sucedera no primeiro mandato de Merkel.
Em 27 de Novembro, mais de um mês depois desse "talvez", era anunciado e publicamente divulgado um acordo escrito sobre o programa e composição do novo governo. Dezenas de jornalistas e de repórteres fotográficos registaram o momento: Angela Merkel (pela CDU) ao centro, à sua direita Horst Seehofer (líder da CSU) e à sua esquerda Sigmar Gabriel, que ficou como número dois do governo. Todos deram a cara, lado a lado, pelo compromisso assumido enquanto seguravam na mão o mesmo guião de governação para os quatro anos seguintes. 
Face à relutância de muitos dos seus membros, que temiam o risco de o partido se "pasokizar", em 16 de Dezembro, 85 dias depois das eleições, o SPD fez ainda um referendo interno inédito. Resultado: 76% (quase 267 mil militantes) aprovaram a reedição da "Grande Coligação" com a CDU/CSU.
Dois anos, sanções e contra-sanções da Rússia, novo resgate para a Grécia e quase um milhão de refugiados depois, a economia ainda cresce, o desemprego ainda desce, os salários sobem, o Estado tem excedente orçamental, o rating permanece firme em triplo A - e a coligação alemã não treme.
António Costa foi o grande derrotado de 4 de Outubro – não só porque pediu uma "maioria absoluta" e o PS perdeu para a coligação que passou os últimos quatro anos a executar o mais duro programa de ajustamento de que muitos têm memória, mas também porque não convenceu o eleitorado com a conversa da aproximação à esquerda - possivelmente porque ele mesmo não estaria convencido. A três meses das eleições, aqui no Negócios, o que o então candidato do PS realçou em Catarina Martins foi "o timbre da voz". "Fora isso, ainda não lhe registei mais nada". Face aos resultados eleitorais, Antonio Costa não pôde ficar só pelo timbre de Catarina Martins – teve de pôr o PS e o país a afinar por toda a extrema-esquerda.
António Costa prometeu que não seria líder de uma coligação negativa, pelo que só derrubaria a solução de governo mais votada pelos portugueses se tivesse uma alternativa para toda a legislatura. Em 10 de Novembro, um mês e meio após as eleições, depois de ter pedido a Cavaco Silva que não perdesse tempo a indigitar Passos Coelho como primeiro-ministro, a liderança do PS entregou na Assembleia da República a moção de rejeição que derrubou o governo PSD/CDS. Nesse mesmo dia, no curto intervalo entre a entrega e a votação da moção, assinou separadamente três diferentes "posições conjuntas para solução política" com todos os demais partidos com assento parlamentar  (infelizmente, disse António Costa, não foi possível um acordo com o PAN – talvez porque Jerónimo e Heloísa o impediram, para não dar mais espaço a um genuíno partido ecologista). Foi difícil encontrar a sala. Nenhum jornalista pôde entrar. As únicas fotografias que você viu foram disponibilizadas à comunicação social pelo Partido Socialista.
Como ilustra a mais recente tragédia grega, os limites e as possibilidades de financiamento de um Estado como o português, que acaba de sair de um resgate e deve cerca de 60 mil milhões de euros aos mecanismos europeus, dependem fundamentalmente do compromisso de qualquer governo em cumprir as regras europeias. O mesmo António Costa que disse que não podia ser "muleta" nem ponderar uma coligação PSD/CDS/PS por "divergências programáticas", assinou nesse 10 de Novembro três contratos de financiamento político em que União Europeia e euro são palavras proscritas. Nessa mesma manhã, António Costa comprometeu-se com o BE em criar um grupo para estudar a sustentabilidade da dívida integrado pelo próprio ministro das Finanças; na tarde desse mesmo dia, Mário Centeno disse ao Financial Times que "ninguém com bom senso pensará em não pagar o que deve".
Há neste momento meia dúzia de países na Europa com governos liderados pelo segundo e até pelo terceiro partidos mais votados nas eleições. Em todos os casos, porém, são coligações, nalguns casos apoiadas adicionalmente por acordos de incidência parlamentar.
Antonio Costa, o grande derrotado nas urnas, líder de duas coligações negativas – contra o governo PSD/CDS e contra qualquer solução de governo presidencial – propõe-se fazer uma tripla experiência em Portugal: gerir um país onde falar de fim de crise é tão irresponsável quanto prometer "virar a página da austeridade" com um governo mais minoritário do que o por si derrubado, apoiado por partidos anti-europeus e anti-NATO, pondo o PS em contracorrente com a evolução reformista dos partidos socialistas na Europa. Como lembrava Carlos Gaspar neste jornal, "na Alemanha o SPD está coligado com a CDU, o PS francês tem uma linha reformista e liberal que o põe completamente fora da atracção esquerdista, e em Espanha há uma hipótese forte de aliança entre o PSOE e o Cidadãos e ninguém antecipa uma coligação entre o PSOE e o Podemos".
Em tempos, o BE espalhou cartazes a lamentar-se que o Executivo de Passos Coelho fosse  "um governo mais alemão do que o alemão". Tivesse António Costa um poucochinho do dever de responsabilidade e de transparência do seu homólogo germânico e possivelmente seria tudo menos rápido, menos frágil, menos opaco. Alguém conseguiu ler a carta que enviou a Cavaco Silva? "Presumo que não seja nunca divulgada", respondem-me do Largo do Rato. Que estranha noção de interesse público.

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