Caim e Abel em Paris

Paulo Tunhas
Observador 19/11/2015

É urgente rever a Bíblia. Ou, se se quiser, desconstruí-la “sem paternalismos”. Por estes tempos, para a esquerda portuguesa, foi Abel que matou Caim. Graças a Deus, há maioria no Parlamento.
Os carrascos são carrascos, as vítimas são vítimas. Caim matou Abel, Abel não matou Caim. Desde a passada sexta-feira, tenho tido a impressão que muita gente não se dá bem com estes raciocínios simples. Parece que as coisas são mais complicadas. Numa conversa, fui avisado, por alguém que eu julgava ter-se convertido finalmente ao bom-senso, que o “discurso televisivo” sobre os atentados de Paris sofria de “maniqueísmo”. Não que não existisse na pessoa em questão dor pela carnificina, existia imensa: apenas que ela devia ser, por assim dizer, matéria privada, insusceptível de se desdobrar em juízo político.
Rapidamente me apercebi que esta ideia se encontra muito difundida. Tomemos, por exemplo, a “Nota do gabinete de imprensa do PCP” do dia 14: “PCP condena atentados de Paris”. Nessa nota, o PCP “condena veementemente” (porquê sublinhar a veemência? – seria preciso?) os “crimes hediondos” de Paris. Óptimo. Mas qual a lição essencial a reter? Ela reside, explica a nota, em que “o terrorismo, quaisquer que sejam as suas causas e objectivos proclamados, serve sempre os interesses mais reaccionários”. O mal do terrorismo é, portanto, o de favorecer os “interesses mais reaccionários”. E como o combater, então? Combatendo as “suas mais profundas causas – políticas, económicas e sociais”. Causas que são, obviamente, o produto dos “interesses mais reaccionários”.
Chega-se assim à conclusão segundo a qual o terrorismo é condenável por favorecer os interesses reaccionários, que são a sua causa. Quer dizer, em última análise, pela sua ineficácia. Nesta lógica, eclipsam-se as vítimas dos carrascos e os carrascos são o puro produto de causas alheias e estupendamente fascistas. Mas sobram, é claro, avisos múltiplos sobre o aumento previsível do racismo, da xenofobia, do fascismo, da guerra e do terror. Não que o PCP não sofra com as vítimas: sofre. Mas o juízo político fá-las desaparecer do cenário em benefício do terror fascista que virá aí.
Não é só o PCP quem assim pensa. O Bloco de Esquerda navega nas mesmas águas, se bem que com um suplemento lírico ausente da austeridade marxista-leninista. Testemunha-o, na Esquerda.net, o artigo “Atentados de Paris. A resposta passa pela solidariedade e não pelo ódio”. Os atentados são também, para Catarina Martins, “hediondos”, e “somos todos parisienses”. Mas, pergunta-se desta vez Marisa Matias, como “acabar com o terrorismo”? Simples: percebendo “as causas e as razões destes atentados”. O perigo maior reside na “vingança” e no “ódio” daqueles que fomentam as causas que geram os terroristas. Como nota Pedro Filipe Soares, “o medo e o ódio espreitam. Não os podemos deixar vencer”.
Também para o Bloco de Esquerda as causas das acções dos terroristas têm uma razão de ser alheia a eles mesmos, e o mal dos terroristas está em procurarem “impor o medo e o ódio”, diz Pedro Filipe Soares. O nosso medo e o nosso ódio, sublinhe-se. As vítimas dos carrascos já não estão aqui. Fica apenas o nosso medo, o nosso ódio e o nosso desejo de vingança. O que é preciso é “exigir o melhor que a humanidade nos pode dar” e “solidariedade”. Sinceramente: “solidariedade” com quem?
Um terceiro e último exemplo. A deputada socialista Isabel Moreira publicou no Público do dia 14 um artigo intitulado “O atentado – quem captura quem”. Por uma razão ou outra, vai mais directamente ao essencial do que o PC ou o Bloco. Os “terríveis atentados” exigem uma “análise fina” que ela se propõe, no seu artigo, encetar. Em que consiste a tal “análise fina”? Ao princípio, na constatação que o “momento trágico (…) é uma arma utilizada pela extrema-direita com o perigo da eficácia, desde logo porque se infiltra em discurso suave em vozes de protagonistas de uma outra direita que se espera – ou esperava – não contagiável”. Tais “protagonistas” querem “pegar fogo” à dor, querem “instrumentalizar” a dor – uma dor que, ela garante-nos, não sentem – para dela fazer “uma arma para propósitos de disseminação da xenofobia e do racismo”.
A partir daqui, a “análise fina” de Isabel Moreira leva-nos mais longe. A história, diz-nos, repete-se, e lembra, sapiente historiadora, a criação, “a partir dos anos 20 do século passado”, do judeu como um “alvo fictício”. (Permito-me notar que a palavra “fictício” aqui não se encontra lá muito bem empregue: o “alvo”, infelizmente, foi muito real. Mas, enfim, percebe-se o que quer dizer.) E é movida pelo seu saber histórico que se dirige àqueles que “por vezes sem intenção, por vezes sem consciência, por vezes movidos por uma ignorância compreensível”, partilham o “discurso da extrema-direita europeia” e se promete oferecer-lhes uma “desconstrução sem paternalismos”. Eu, por acaso, até achei a referência à inconsciência e à ignorância (ainda por cima “compreensível”) um bom bocado paternalista, mas isso é coisa de pouca monta, comparada com os benefícios da “desconstrução” a vir.
Há uma coisa muito curiosa no artigo de Isabel Moreira. Tanto para o PCP como para o Bloco de Esquerda, o eclipse das vítimas e dos carrascos enquanto carrascos resultava de um argumento mais ou menos explícito e surgia como uma espécie de conclusão. Aqui é como se carrascos e vítimas desaparecessem à primeira linha. Alguém poderia até suspeitar que os actos terroristas do dia 13 não lhe suscitaram verdadeiro interesse. Daí o passar directamente à conclusão. Para o PC e para o Bloco, a consideração do sofrimento deve permanecer arredada de qualquer juízo político. Para a “análise fina” de Isabel Moreira, não há sequer consideração do sofrimento.
Ah, é verdade: a palavra “islamismo” não aparece no artigo (como, de resto, em nenhum dos três textos). Nem a palavra “muçulmano”, apesar dos muçulmanos serem, para Isabel Moreira, como é óbvio, as vítimas eleitas do terror fascista que, ela sabe, aí virá. A sua única nomeação, indirectíssima, aparece, de forma paradoxal, pelo recurso à figura dos judeus. Não deixa de ser curioso.
A acabar. É urgente rever a Bíblia. Ou, se se quiser, desconstruí-la “sem paternalismos”. Por estes tempos, para a esquerda portuguesa, foi Abel que matou Caim. Graças a Deus, há maioria no Parlamento.

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