Afinal, o que é que os bispos decidiram?


Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!


De acordo com algumas notícias, os conservadores prevaleceram no Sínodo dos Bispos sobre a família (RTP, por exemplo). Mas já houve quem entendesse que o Papa abriu portas que "dificilmente se voltarão a fechar" (Público). Não é fácil, seguindo apenas as grelhas de leitura às vezes muito maniqueístas da comunicação social, fazer um balanço do Sínodo dos Bispos que esteve reunido em Roma até sábado passado.

O tema do sínodo era a família, o tom foi de grande abertura e transparência e, na verdade, o documento que esteve em discussão é apenas a base para um debate que durará até ao final de 2015. "Ainda temos um ano para amadurecer, com verdadeiro discernimento espiritual, as ideias propostas e encontrar soluções concretas para tantas dificuldades que as famílias devem enfrentar", disse o Papa Francisco no final do Sínodo. Tendo em conta o aviso de que às vezes há alguma simplificação nas leituras mediáticas, aqui ficam alguns relatos sobre o que se passou em Roma:
Público - Papa Francisco abriu portas que "dificilmente se voltarão a fechar" e "Um documento de prenúncio de uma Igreja que não muda".
New York Times – "No Consensus at Vatican as Synod Ends".
Le Figaro – "Le synode continue de contester les passages sur l'homosexualité et les divorcés remariés".
Le Monde – "Le pape François et les familles telles qu'elles sont" (só para assinantes).
Rádio Renascença – "Falta de consenso deixa tudo em aberto no Sínodo" e "Erro de tradução na base de parte da polémica no sínodo".
ABC – "El Sínodo reforzará el «ideal de familia» para evitar malentendidos".
La Croix – "Le Synode achevé, les évêques marqués par la liberté de ton des débats" e "Les « cinq tentations » du synode, par le pape François".
RTP – "Conservadores prevalecem no Sínodo dos Bispos sobre a família".

Quando se trata de temas da Igreja de Roma, tenho por hábito recomendar que se vá sempre às fontes, neste caso ao site do Vaticano, que está bem organizado, fornece quase sempre os documentos em várias línguas e permite ter uma visão de conjunto. Mas não fácil, sobretudo quando se trata de documentos doutrinais. Neste caso o Papa decidiu que o resultado das discussões entre os bispos devia ser tornado público. Infelizmente esse documento ainda só existe em italiano: "Relatio Synodi" della III Assemblea generale straordinaria del Sinodo dei Vescovi: "Le sfide pastorali sulla famiglia nel contesto dell'evangelizzazione" 

Passemos agora a algumas análises e textos mais opinativos, começando precisamente por uma reflexão de Rui Ramos aqui no Observador – "O dilema da igreja católica" – onde, depois de se distanciar do habitual guião que procura reduzir todos os debates a enfrentamentos entre "conservadores" e "progressistas", nota:
Para se identificar com toda a sociedade, resta à igreja um meio: em vez de impor as suas doutrinas, acolher as atitudes da sociedade, o que, em geral, consistirá em perfilhar, reinterpretando-as em termos religiosos, as últimas inclinações da legislação estatal ou dos programas televisivos da manhã. Se os fiéis não vão a Roma, vai Roma até aos fiéis. O problema é que, por esse caminho, a igreja pode rapidamente deixar de representar a continuidade apostólica, para cair numa "espiritualidade" de supermercado, em que cada um escolhe o que, naquele dia, mais lhe convém.

Numa entrevista à Rádio Renascença, o Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, que participou no encontro de Roma, defendeu a ideia de que a Igreja está decidida a reflectir problemas que afectam famílias:
"Dizer às pessoas que estamos a pensar nisso. E isto, que parece tão simples, já foi fruto de muito esforço. Foi um sínodo que teve relevância em que manifestamos que estamos cientes deste problema e que a Igreja está resolvida a reflecti-lo. Estas conclusões [do sínodo] vão ser a base de trabalho que as conferências episcopais vão ter por diante sabendo e insistindo que o tema principal é a família cristã"

Na mesma Renascença, Aura Miguel, a jornalista que costuma acompanhar o Vaticano e que também esteve em Roma durante o Sínodo, escreve, em "Um ano pela frente", que a diferença de leituras que houve nos órgãos de informação também teve paralelo na forma como alguns cardeais receberam o resultado dos debates: "Um, por exemplo, acha que "o Sínodo devia ter ido mais longe sobre os gays", enquanto em sentido oposto, um outro garante que "o Evangelho não pode mudar ao nosso gosto"."

De resto, mesmo entre especialistas, entre os que estão habituados a ler a evolução da Igreja Católica, não se encontra consenso fácil sobre o sentido apontado por este sínodo. Duas leituras muito contrastantes, mas ambas muito interessantes, foram as que encontrámos no francês Le Figaro e na americana National Review.

Jean-Marie Guénois, o editor de temas religiosos do Figaro, autor de um livro acabado de publicar – «Jusqu'ou ira François» - manifestou uma opinião muito forte: «Le synode ouvre une «crise» dans l'Eglise». Extracto:
Le synode a parfaitement atteint l'objectif initial fixé par le Pape. Il souhaitait ouvrir un débat pour faire évoluer les positions et résoudre des questions essentielles. Il a donc lancé les discussions en donnant un coup de pied dans la fourmilière. Les positions opposées se sont exprimées librement, le Pape a ainsi pu mesurer et les arguments, et le refus ou l'acceptation de ces changements. Ce qui signifie que le résultat du vote a peu d'importance. Il n'empêchera pas le pape de prendre une décision après la seconde session du synode. Elle sera délicate car François veut concilier indissolubilité du mariage avec un accès possible, dans certains cas, à la communion pour les divorcés remariés.

Na mesma análise Jean-Marie Guénois faz uma leitura da figura do Papa Francisco que me parece especialmente importante: "Encore une fois, ce pape qui n'est pas un théologien mais un pasteur, voit l'Eglise comme un «peuple en marche» qui découvre collectivement au fur et à mesure du chemin, les voies nouvelles à emprunter."

Num sentido fortemente contrastante, Kathryn Jean Lopez considerou, na National Review – Roman Renewal – que o Sínodo teve um significado radicalmente diferente: o regresso e a reafirmação da Humanae Vitae, não tendo sido por acaso que Paulo VI foi beatificado no dia em que o Sínodo terminou:
Conspicuously missing from most of the news coverage was the fact that the working document, incomplete though it was, directly cited and reaffirmed Humanae Vitae. And the fact that the synod would culminate in Pope Francis's beatifying the author of that encyclical — the first step on the road to sainthood and a reminder of the continuity of the Church even in the reform and renewal afoot in Francis's papacy.

Finalmente, sobre os temas em discussão no Sínodo, há dois textos que julgo incontornáveis, ambos publicados aqui no Observador. O primeiro, da autoria do padre Gonçalo Portocarrero de Almada - Escândalo no Céu: João Baptista descanonizado! – opta por um registo irónico para se distanciar de algumas tendências mais uniformizadoras: "A principal queixa contra o dito Baptista prende-se com a sua ausência de sentido pastoral e a sua falta de misericórdia para com o rei Herodes Antipas, a quem acusou de viver em adultério".

O segundo, da autoria do padre Miguel Almeida - Afinal, um debate tão antigo como a Igreja -, mostra como evoluíram, ao longo de dois milénios, as posições da Igreja de Roma pois, "ao contrário da sensação comum, a questão de como lidar com casamento-divórcio-recasamento, é tudo menos recente. Logo na era apostólica surgem diferentes sensibilidades e mesmo propostas de solução. O próprio Novo Testamento testemunha duas destas possibilidades."

Espero ter-vos deixado, com todas estas sugestões, muito alimento para o espírito. E bastos temas para acompanhar uma reflexão que durará, dentro da Igreja mas também fora dela, pelo menos mais um ano.

Boas leituras. 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António