A beata e o baeta

JOÃO TABORDA DA GAMA | DN 2014.10.30

Ter filhos tem uma grande vantagem, para além do IRS: ajuda-nos a formar opinião sobre questões complicadas. Um exemplo: não tenho opinião sobre as presidenciais brasileiras, não li a Veja e não acompanho a política brasileira mais do que o brasileirão. Mas, numa altura em que todos temos de botar faladura sobre tudo, há sempre alguém que pergunta se o resultado das eleições foi o melhor. E aqui entra o método: se tivesse um filho no Brasil, quem é que eu gostava que ele tivesse apoiado? Dá sempre Dilma, não sei porquê. Até sei. Porque associo Dilma a mais convicção e a menos pobreza.
No fundo, o que assusta não é ter um filho revolucionário ou ativista, é a apatia, o desinteresse, a amoralidade, as noites coladas na Xbox. Mesmo que as convicções sirvam de saco de boxe à maioria silenciadora do politicamente correto.
E isto leva a outro exemplo. Nas duas últimas semanas discutiu-se no espaço público as opções de vida da Catarina e do Fábio.
A Catarina e o marido, entre outros jovens casais católicos, publicaram um texto no jornal i no qual defendem e testemunham o cumprimento estrito da doutrina da Igreja sobre sexo. Afirmam sobre a sua sexualidade conjugal: "Dispensamos as pílulas, os preservativos e tudo o que poderia distorcer esta união livre. Não queremos ser objetos sexuais, queremos amar e ser amados. E não queremos excluir Deus desta parte da nossa vida."
O Fábio concebeu e abriu uma barbearia de homens onde senhoras não podem entrar, na Rua do Alecrim. Ao DN, afirmou que "os homens, entendemos nós, gostam de estar à vontade e de ter uma privacidade masculina enquanto recebem esses serviços".
A Catarina assume publicamente como vive a sua fé, vivência minoritária na sociedade portuguesa contemporânea que, mesmo nos meios católicos, gosta pouco de compromissos radicais e da sua verbalização. "Faz o que quiseres com o teu marido, tem os filhos que quiseres, mas não venhas falar disso para os jornais" é o subtexto de muitos dos comentários críticos ao seu depoimento.
O Fábio treinou-se para ser barbeiro, estudou a arte da barba e cabelo. Suspendeu um doutoramento e uma vida boa em empresas grandes lá fora. Quando tantos saem, voltou. Investiu horas e dinheiro numa ideia e nessa ideia cabem braços tatuados, barbas e cabelos de homens, mas não cabem olhos femininos. Por causa disto, a sua barbearia tem sido insultada nas redes sociais, acusada de misoginia. Uma reação desproporcional a uma provocação hipster que é, em rigor, inofensiva quanto ao que realmente importa na luta pelos direitos das mulheres.
A Catarina e o Fábio não se conhecem, acreditam em coisas diferentes, vivem cada um num dos vários mundos que por aí há, mas a sua história é, num ponto, a mesma: uma lição de liberdade, um repto à tolerância. A verdadeira liberdade dá espaço ao incómodo, ao que irrita a alma. E quando a liberdade dos outros nos arrelia devemos aproveitar para pensar: de onde me vem este desconforto? Quanto mais não seja por isso, devemos estar agradecidos à Catarina e ao Fábio.
Mas admito que possa estar a ser parcial e a sofrer de isidrose: a Catarina e o Fábio foram meus alunos e deles guardo boas memórias. A isidrose é a doença que leva ao elogio patológico de uma pessoa mais nova com quem nos cruzámos e à visão desproporcionada da nossa influência no seu destino, e que deve o seu nome ao grande Júlio Isidro ("Fulana de tal canta bem, não canta? Começou no meu programa, eu é que a descobri e lancei."). Já agora, a isidrose é um mal menor quando comparada com o seu inverso, a marcelose, patologia que leva à chacota compulsiva dos antigos alunos ("Ó Judite, fulano de tal foi meu aluno, dei-lhe uma belíssima nota, mas é um autêntico de-sas-tre como político, ouviu?").
A Catarina e o Fábio são dois grandes exemplos de quem vive sem temer os apupos da plateia. Vivem de um modo integral, radical, ideias diferentes mas inofensivas para o resto dos mortais, por mais provocadoras ou minoritárias que sejam. Não quero aqui julgar as suas convicções, mas apenas louvar o facto de as terem com tanta determinação. A determinação que queria muito que os meus filhos viessem a ter na defesa das suas próprias convicções.

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