O que o PS nos tem a propor ou a tentação de enfiar a cabeça na areia
Atribuir todas as culpas da nossa situação à Europa e ao mundo não nos ajuda a resolver os problemas
Durante duas semanas, o país viveu a telenovela do avança-afinal-não-avança de António Costa e a tragicomédia do "qual é a pressa?" de António José Seguro. Nas rádios, nas televisões e nos jornais alimentou-se o suspense sobre um documento programático que haveria de resolver, ou não resolver, a magna questão de saber se haveria ou não disputa pela liderança do PS. Domingo passado, o suspense acabou. O famoso documento viu a luz do dia. Mas só lá esteve o tempo suficiente para perder o seu nome original - "Portugal Primeiro" - e ganhar anónima e deslustrada designação - "Documento de Coimbra". Com mais nada, de resto, se ocupou a comunicação social. Aparentemente, as 27 páginas do texto eram alimento a mais para as moleirinhas ligeiras de boa parte dos nossos jornalistas, que logo saltaram para assuntos menos indigestos e mais frescos. É pena, porque num país onde essas mesmas almas passam a vida a reclamar por "ideias", esse papel seria o local indicado para as encontrar, ou para dar pela falta delas.
A primeira preocupação do documento foi a de retomar uma "narrativa" desta crise - como gostam de dizer os spin doctors socialistas - conciliável com o desastre da governação anterior. Apesar do opróbrio causado pelo exílio parisiense do ex-líder, o PS de Seguro encontrou-se com o PS de Costa na defesa da ideia socrática de que tudo o que mal nos aconteceu é consequência da crise internacional, da moeda única, das economias emergentes, do excesso de alargamento da União Europeia, da especulação dos mercados ou da inacção do Banco Central Europeu. As Scut e as PPP, o cheque-bebé e o aumento imoderado das tabelas salariais da função pública, os subsídios generosos e o Magalhães, a contabilidade criativa e os desvarios da Parque Escolar, os milhares de tomadas eléctricas para carros que não existiam ou a protecção às empresas rentistas do regime, nada disso existiu e nada disso contribuiu para estarmos onde estamos. Portugal não andou quinze anos seguidos a consumir mais 10% do que produzia (acumulando dívida externa) e o Estado não andou sempre com défices muito superiores ao tolerável (acumulando dívida pública) - para o PS, aparentemente nunca houve excesso de consumo público e de consumo privado, tudo estaria pelo melhor não fosse o subprime americano. Ao alimentar esta ficção, o documento retoma até o famoso PEC IV, ignorando convenientemente que este previa "menos tempo e menos dinheiro", já que previa um ajustamento orçamental muito mais rápido do que o negociado com a troika (3% logo em 2012, quando agora a meta é de 2,5% mas só em 2014).
Esta lógica de raciocínio tem uma inevitável consequência: nós, portugueses, não necessitamos de mudar muito, os outros é que necessitam de se adaptar aos nossos ritmos e às nossas idiossincrasias. Para o PS, por exemplo, o esforço de contenção orçamental de Portugal é descartável, já que na Europa tudo se começou a resolver quando Mario Draghi disse que o BCE faria tudo para salvar o euro. Apesar desta forma de olhar o mundo e a economia lembrar a dos acham que tudo se resolve por intervenção do Espírito Santo - uma ideia com tradições nacionais que remontam à Batalha de Ourique -, a verdade é que, neste caso, até os números a desmentem. Basta recordar que, para Portugal, a taxa de juro a dez anos atingiu o seu máximo em Fevereiro de 2012, quando passou os 17%, desceu para 11%/12% em Julho, altura em que Draghi fez a sua famosa declaração, e continuou a descer até fechar o ano perto dos 5%/6%. Ou seja, já tinha descido tanto antes de o presidente do BCE falar como desceu depois, mas isso não impediu o PS de escrever que as políticas de rigor não influenciaram os mercados. Ao pensar assim, os socialistas optam pelo caminho aparentemente mais fácil: renegociar os prazos que eles próprios negociaram em nome da promessa de fazerem o que nunca conseguiram, pois nunca sequer cumpriram com a meta de 3% de défice público (o melhor resultado foi de 3,2% em 2007). Repetem por isso que os prazos "não são credíveis", o que na sua óptica se compreende: afinal a experiência dos seus anos de governação é a experiência do crescimento dos gastos públicos e a experiência do desespero de sucessivos ministros das Finanças face a primeiros-ministros sempre mais empenhados em mostrar obras físicas e em dar benesses salariais do que em reduzir estruturalmente o peso da despesa pública (o peso do Estado passou de 40,7% em 1995 para 44,3% em 2001, com Guterres, e depois de 45,3% em 2004 para 51,7% em 2010, com Sócrates). A sua estratégia, agora repetida no documento de Coimbra, foi a de "conciliar rigor orçamental com crescimento económico". Só que foi sempre nisto que deu.
A crença do PS e a lógica da sua "narrativa" é a de que a acção do Estado, em particular o investimento público - a que agora tem o cuidado de chamar "reprodutivo" -, pode gerar um crescimento económico que pague o crescimento da despesa pública. Ora se ainda se podia acreditar nisso no tempo das vacas gordas de Guterres, como se pode insistir na mesma ideia depois dos anos e anos de Sócrates a seguir essas políticas sem crescimento económico que se visse? Não ocorre aos socialistas que as coisas podem hoje ser ao contrário, isto é, que só teremos mais crescimento se houver mais dinheiro na economia, o que implica que o Estado consuma menos em impostos e menos em empréstimos. Ou seja, fazer exactamente o contrário do que sugeriu, com a placidez da ignorância, um deputado socialista, que esta semana escreveu que "PIB é despesa", essa filosofia muito confortável que levou muitos, dos governos aos bancos, a estimularem um consumo desmedido que, em boa parte alimentado por importações, não fez crescer o PIB mas fez crescer as dívidas. Aquilo que os próprios socialistas reconhecem que as suas políticas implicariam no curto prazo - mais défice e mais dívida - não se resolve milagrosamente com consumo ou com expectativas de mais consumo. Defendê-lo é continuar a enfiar a cabeça na areia, não ter a serenidade de retirar as lições da experiência dos últimos anos e não ser capaz de perceber que não se pode olhar para um país com a nossa situação financeira e demográfica da mesma forma que se olhava para, por exemplo, a Europa do pós-guerra. Isso sim é cegueira ideológica.
Um bom exemplo de como se pode ver de duas formas uma mesma solução é a ideia, boa, de que se deve promover a reabilitação urbana porque isso absorverá parte da mão-de-obra desempregada da construção civil. A forma clássica, socialista e napoleónica, de o fazer é através de programas públicos directos (a Parque Escolar, com toda a sua imoderação e megalomania, também nasceu desta ideia) ou de programas públicos indirectos, isto é, de subsídios, de créditos bonificados e de medidas aparentadas. Outra forma de o fazer é criando estímulos que levem as pessoas a investirem na recuperação, sendo que um desses estímulos até é a liberalização da lei das rendas, uma medida que o PS tão critica. Num mercado congelado por medos sociais muitas vezes inexistentes, ninguém tem dinheiro nem vontade de investir. Num mercado onde voltasse a haver oferta e procura de casas, para mais um mercado potenciado pelas dificuldades no crédito à habitação própria, a possibilidade de haver quem queira investir seria muito maior. Depois haveria que fazer diminuir as barreiras administrativas, nomeadamente as dificuldades de licenciamento levantadas pelas câmaras. Em Portugal sempre se fez recuperação urbana apostando em mais Estado, e os resultados estão à vista: alguns bons exemplos, mas sempre muito pontuais e muito "especiais". É talvez altura de experimentar fazer ao contrário, como menos Estado, menos regulamentos e menos serviços públicos a dar pareceres, a "apoiar" e a "seleccionar". Mais do mesmo, nesta como na generalidade das áreas da governação, não é solução. É nisso que este "Documento de Coimbra" falha redondamente. O país precisava de um PS mais interessado em alternativas de futuro do que em prestar vassalagem às "narrativas" do passado. Mas não foi esse o PS que saiu de Coimbra.
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