A pílula do amor

Alexandre Homem Cristo, ionline 18 Fev 2013
Qual a diferença entre o amor (verdadeiro) e aquele induzido por fármacos? Sendo idênticos da perspectiva do utilizador, faz sentido a distinção?
Imagine a existência de um comprimido que, sem efeitos secundários, lhe garantiria uma permanente sensação de bem-estar. Ou imagine que um mesmo comprimido poderia despertar o sentimento do amor em quem o consumisse. Não é difícil conceber tal possibilidade. Há décadas que ela consta no nosso imaginário. Recorde-se, por exemplo, Aldous Huxley e o seu "Admirável Mundo Novo" (1932), no qual a droga SOMA, providenciada pelo governo aos cidadãos como via de controlo social, permitia escapar a todas as sensações negativas (dor, tristeza, melancolia) e substituí-las por positivas. Era o fármaco perfeito. E era, há 80 anos, uma espécie de sonho longínquo. Hoje, já não o é.
Com a generalização dos antidepressivos, cujo objectivo é (entre outros) garantir o bem-estar de quem os consome, ficámos mais próximos desse horizonte. Em Portugal, estima-se que o consumo actual de antidepressivos duplicará até 2016. Estamos, por enquanto, a falar apenas do tratamento de patologias psíquicas. Mas é expectável que, num futuro próximo, e anulados os efeitos secundários (para permitir uma utilização por tempo indeterminado), exista uma grande tentação para o consumo generalizado desses fármacos. Partindo desse pressuposto, o (pouco) debate tem--se focado na discussão sobre se, no futuro, se deve recorrer a fármacos para obter bem-estar ou paixões. Isto é, se devemos usar fármacos para incutir em nós sentimentos que, de outro modo, já não conseguimos alcançar. A questão é complexa e as respostas não são fáceis. Tome-se, como exemplo, o caso do amor.
Há, nas sociedades ocidentais, cada vez mais divórcios. Em 2011, em Portugal, para cada 100 casamentos celebrados assinaram-se 74 divórcios – há 10 anos era menos de metade. São muitas as razões sociais, legais e psicológicas que ajudam a explicar o facto. E se as legais e sociais são as mais difíceis de mudar, no caso das psicológicas a questão coloca-se: existindo no mercado, deve ou não tomar-se a pílula do amor para salvar uma relação? Num artigo recentemente publicado, "Natural Selection, Childrearing, and the Ethics of Marriage (and Divorce)" (2012), os autores (entre os quais Julian Savulescu, conhecido defensor do uso de fármacos para potenciar as capacidades humanas) argumentam que sim. Mas, mais do que sugerir apenas uma utilização de carácter voluntário, afirmam existir uma obrigação (moral) em fazê-lo em determinadas situações – quando estiverem em causa os filhos, por exemplo.
Este caso é útil, porque dele sobressaem as difíceis perguntas a que, num futuro próximo, teremos de responder. Qual a diferença entre o amor (verdadeiro) e aquele induzido por fármacos? Sendo idênticos da perspectiva do utilizador, faz sentido a distinção? Como garantir a prevalência do livre arbítrio no consumo desses fármacos, que provavelmente causariam uma elevada dependência emocional? Como gerir a comercialização destes fármacos, que teriam a capacidade de influenciar os comportamentos humanos? E como prevenir que o Estado imponha o consumo desses fármacos em determinados casos?
Por mais futuristas que hoje possam parecer, para todas estas questões teremos, em breve, de obter resposta. Quando as vantagens são tão claras e atraentes, a tentação leva-nos a esquecer os riscos. A ciência sempre perseguiu os sonhos da humanidade e, como a História nos demonstra, nem sempre os homens estavam prevenidos para que esses se tornassem reais. Antes que seja tarde, este é o momento para prepararmos o futuro.

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