O pendão da Páscoa
João César das Neves
Logos, 2013-02-19
«Estes mandamentos que hoje te imponho estarão no teu coração. … Escrevê-los-ás sobre as ombreiras da tua casa e nas tuas portas» (Dt 6, 6 e 9).
O Deus invisível, transcendente, sublime fez-se carne e habitou entre nós. Este facto inaudito é a base da nossa fé. Isto significa que Deus assumiu um corpo, um rosto, uma posição social, uma cultura, uma terra. O Deus que fez o mundo, amou-o de tal modo que quis viver nele e abandonou a sua sublimidade para ter uma presença corporal.
Isto significa que a nossa fé é a mais concreta, palpável, encarnada de todas as religiões. Nada na nossa fé está desligado da realidade física e concreta. Tudo é patente e visível. Desde o princípio os cristãos são um povo constituído por pessoas particulares, que se reuniam num local específico: «Reuniam-se todos no Pórtico de Salomão e, dos restantes, ninguém se atrevia a juntar-se a eles, mas o povo não cessava de os enaltecer» (Act 5, 12-13). A religião cristão, apesar de toda a sua elevação espiritual, filosófica e conceptual, nunca desdenhou o povo simples e os marcos terrenos. Campanários e procissões, cruzeiros, catedrais, conventos e mosteiros, hábitos e pendões, nomes de ruas e de hospitais fazem a nossa fé presente na arquitectura e toponímia das nossas cidades, na vida corrente das nossas sociedades. Simplesmente porque «o Verbo se fez carne e habitou entre nós» (Jo 1, 14).
A Encarnação é a presença de Deus no mundo. Precisamente por isso nenhum facto cristão se tornou mais universal e mais visível que o Natal. Todo o mundo o celebra, mesmo que não seja crente, e por todo o lado nessa época se multiplicam os símbolos alusivos. Este excesso de sucesso levou alguns a notar que, presente em todo o lado, o nascimento de Cristo acabava por estar realmente ausente. Assim nasceu o estandarte com o Menino Jesus, que desde há uns anos tem decorado muitas das janelas e fachadas das casas portuguesas.
Trata-se de uma excelente iniciativa, que tem desempenhado um papel muito relevante. No meio de toda a simbólica natalícia, cada uma daquelas singelas bandeiras mostra ao mundo que alguém sente o significado profundo dessa celebração. Ao ver o pendão, instintivamente sentimos um laço profundo com as pessoas que vivem atrás daquela janela. Mais importante, aquela imagem conduz-nos, no meio da vida afogueada, a uma fugaz meditação sobre o sentido da quadra, sobre a profundidade do que estamos a viver.
Agora, por iniciativa de um sacerdote franciscano do Patriarcado, surge o estandarte da Páscoa.
Se possível, este ainda é mais necessário que o do Natal. Primeiro porque o Mistério Pascal é o verdadeiro centro da nossa fé, a finalidade última da Encarnação. Por Ele fomos salvos, n'Ele encontramos a vida. Segundo porque esta quadra é socialmente muito menos visível que o Natal, e marcá-la é mais urgente e influente. Terceiro porque o longo período de Quarta-feira de Cinzas ao Pentecostes torna a dispersão mais perigosa e frequente, exigindo ainda mais um símbolo que repetidamente nos recentre no essencial.
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