O novo mito chinês

Público 2012-11-19  João Carlos Espada

As mudanças recentemente ocorridas na liderança do Partido Comunista Chinês foram devidamente acompanhadas pela imprensa ocidental. Houve comentários de todos os tipos, como é natural, embora uma tonalidade comum tenha emergido: a China será a superpotência do século XXI.

Previsões são previsões, como se costuma dizer, e o século XXI ainda vai no adro. A ver vamos. O que já me parece mais racionalmente susceptível de teste é o elogio rasgado do sistema político chinês e a sua defesa como alternativa à democracia pluralista ocidental. Esse é o argumento que está a surgir em diversos quadrantes, alguns totalmente inesperados.

É o caso do Financial Times de Londres. Na segunda-feira passada, publicou com grande destaque um artigo de opinião assinado conjuntamente por um professor inglês na Universidade de Tsinghua e por um empresário de Xangai. Intitulava-se "Em defesa do método chinês de escolher líderes". O texto tem de ser lido, para se acreditar que saiu no FT, e devia ser amplamente discutido - pelos disparates que contém, pela ignorância que revela... e porque prenuncia algo que vem aí.

Os autores começam por anunciar que "o sistema político chinês sofreu profundas mudanças nas últimas três décadas, tendo chegado perto da melhor fórmula para governar um país de grandes dimensões: democracia na base, meritocracia no topo, com espaço no meio para experimentação".

A participação popular em eleições locais, argumentam os autores, tem razão de ser porque as pessoas em regra conhecem os problemas locais. Mas é problemática (sic) no plano nacional. Em primeiro lugar, porque os eleitores deviam votar pelo bem comum, mas votam tendo apenas em conta os seus interesses económicos. Em segundo lugar, eles nem sequer têm competência económica para entender esses seus interesses estreitos. Em terceiro lugar, os ricos têm mais competência para compreender os seus próprios interesses e arranjam sempre maneira de usar o sistema a seu favor. Em quarto lugar, os interesses mundiais e das gerações seguintes não são tidos em conta pelos eleitores, o que faz com que a democracia hipoteque o futuro e o bem do planeta em benefício das gerações que votam.

Como resolver estes problemas? Os autores não têm dúvidas: com um sistema meritocrático que já está em exercício na China (embora concedam, com magnanimidade, que carece ainda de alguns aperfeiçoamentos). Basicamente, trata-se de aprender com o Partido Comunista Chinês, que, "nas últimas três décadas, passou de partido revolucionário a organização meritocrática."

Eles explicam-nos o sistema. Basicamente, o partido agora recruta nas melhores universidades. Os estudantes concorrem duramente para ter as melhores notas para entrarem nessas universidades. Ao longo da sua formação, têm exigentes testes de carácter (sic) e de conhecimentos técnicos. Os melhores vão ser de novo seleccionados para entrarem no partido. E, uma vez lá dentro, voltam a ter testes de carácter e competência para serem promovidos. A conclusão é clara: "Em vez de desperdiçarem tempo e dinheiro em campanhas eleitorais, os líderes (chineses) podem procurar melhorar os seus conhecimentos e desempenho. (...) Sim, a meritocracia só pode funcionar num Estado de partido único". E, a fechar, os autores deixam o seu repto final: "A concorrência no século XXI é entre boa e má governação (e não entre democracia e autoritarismo). O regime chinês desenvolveu a fórmula certa para escolher líderes. (...) Deve melhorá-lo com base nesta fórmula, não na democracia de estilo ocidental".

Não tenho aqui espaço para dissecar este argumento. Ficam, apesar de tudo, três notas muito curtas. Em primeiro lugar, este argumento não é novo. Foi apregoado e muito apreciado nas décadas de 1920-30 pelos seguidores de Carl Schmitt, na Alemanha, e de Lenine, na Rússia. Em segundo lugar, a democracia, como explicaram Winston Churchill e Karl Popper, não garante os melhores governos. Mas garante que podemos despedir pacificamente os maus governos - coisa que o regime de partido único não consegue fazer. Em terceiro lugar, todo o argumento sobre a meritocracia funda-se num erro capital: assume que o progresso se baseia naquilo que já conhecemos, e, por isso, será susceptível de medição meritocrática. Mas o progresso, que deve ser distinguido de copiar o progresso já obtido por outros, baseia-se sempre decisivamente sobre a descoberta e exploração do desconhecido, muitas vezes contra a sabedoria colectiva dominante.

Só um sistema pluralista, descentralizado, irreverente, pode explorar o desconhecido por ensaio e erro. A autocracia chinesa descobriu isto no plano económico. Faço votos para que venha também a aprender no plano político. Até lá, se não se importam, nós ficaremos com as nossas democracias pluralistas, "o pior regime, com excepção de todos os outros", como observou Churchill.

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