Discernimento

Inês Teotónio Pereira , i-online em 17 Nov 2012
E chegamos finalmente à carga policial desta semana. Polícias de um lado e pessoal-que-atira-pedras-garrafas-e-very-lights-aos-polícias do outro
As crianças fazem uma distinção muito simples entre o bem e o mal. Para elas é óbvio o que cabe em cada uma das gavetas: o lobo mau é mau e o capuchinho vermelho é bom, roubar é mau e dar é bom, as couves são más e as gomas são boas. A vida é assim. Simples. Os clássicos infantis estão cheios de doutrina e de exemplos desta dualidade. Esta lá tudo com heróis, façanhas e figuras monstruosas para ilustrar. Se virmos bem, estes livros são quase textos filosóficos que poderiam ombrear sem despudor com, por exemplo, a alegoria da caverna da “República” de Platão – alegoria facilmente entendida por crianças de oito anos, habituadas que estão a animais que falam, a cavernas e a histórias mirabolantes em que predominam dragões, fadas, anões e princesas aprisionadas. As sombras e as correntes da alegoria de Platão não as intimidariam caso elas quisessem saber o que é o conhecimento (mas não querem, por isso não vale a pena).
A cabeça delas está indiscutivelmente bem compartimentada em termos filosóficos. Só precisam que os compartimentos se vão enchendo, e para isso é preciso saber distinguir o que é mau e o que é bom. Ora bem, aqui é que a porca torce o rabo. Enquanto a conversa se limita aos extremos da voracidade do lobo ou do sadismo das bruxas, é fácil fazer a distinção. O pior é quando a vida complica. É quando a vida diz assim: há uma razão para tudo, não há maus nem bons, somos todos meia coisa. No fundo, o que a vida nos diz é que o lobo deve ter tido uma infância infeliz para querer comer a avó. Só pode. Rasgar-lhe a barriga para tirar a avó lá de dentro foi, digamos, uso de violência excessiva.
É aqui que a cabeça da criança entra em curto-circuito. O mundo que estava tão arranjadinho, só equiparado à época dos cowboys e dos índios, afinal não é nada assim. Até se descobriu recentemente que os índios é que eram os bons – eles que arrancavam os escalpes – e que afinal os cowboys não passavam de uns bêbados selvagens.
A criança agita-se e entra naquela fase em que não acredita em nada. Como não tem discernimento não tem juízo, e como não tem juízo aconselha a sabedoria e a história da humanidade a fechar a criança no armário até que o discernimento venha abrir a porta. É a chamada idade do armário, das hormonas, etc. No entanto, com a Revolução Francesa, Nietzsche, etc. – e apesar do C. S. Lewis e do Tolkien – o discernimento fugiu a sete pés e nunca mais ninguém fechou crianças nos armários não fossem elas envelhecer lá dentro.
E chegamos finalmente à carga policial desta semana. Polícias de um lado e pessoal-que-atira-pedras-garrafas- -e-very-lights-aos-polícias do outro. Inicia-se o arremesso de pedras e as minhas crianças angustiam-se com a saúde dos polícias, elogiam a sua passividade e chegam mesmo a questionar a ausência de resposta. Por fim vem a resposta. Os polícias investem e varrem os manifestantes à bastonada. Os meus filhos jubilaram de alegria? Não. Não jubilaram. Questionaram as bastonadas. Num instante aquelas pequenas cabeças fizeram clique e os heróis passaram a agressores e os agressores a vítimas (o bom senso nas crianças é intermitente). Então expliquei-lhes que quem se manteve na praça apesar dos avisos foi no mínimo insensato, cúmplice ou provocador dos actos de violência. Expliquei-lhes que era necessário repor a ordem pelo bem comum. Expliquei-lhes que a polícia existe para nos proteger e era isso que tinha feito. Expliquei-lhes que uma coisa são manifestações e outra diferente são atitudes de violência.
Eles perceberam e concordaram (o facto de eu ter aberto a porta de um armário não tem nada a ver com essa concordância). Só tenho pena de não existirem armários suficientes para enfiar alguns adultos que não percebem o bê-á-bá que ensinei aos meus filhos. E o pior é que não há troika que nos valha para a crise do discernimento.

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