Pouca-vergonha

João César das Neves
DN 20161007

A sociedade da informação trouxe-nos grandes vantagens, mas também grandes perdas. Uma das mais preciosas é a vergonha. Bisbilhotice e coscuvilhice são velhos vícios boçais. Contar segredos alheios é uma forma de voyeurismo metediço que, em casos escabrosos, chega à sórdida luxúria. A sua origem última é o orgulho. O abelhudo sente prazer pela ascendência que exerce, o que torna a patologia mais frequente nos que não têm poder ou o perderam. Um chantagista suscita repugnância generalizada por torturar e espremer a vítima com uma inconfidência. Publicar os podres alheios é, em certa dimensão, bastante pior, fazendo sem apelo aquilo que muitos pagariam muito para evitar.
Julian Assange anunciou revelações no site WikiLeaks com alegados efeitos na eleição norte-americana. Significativamente, a ameaça é não para Donald Trump, mas para Hillary Clinton. Isto confirma algo que há muito devia ser evidente: o projecto WikiLeaks é ataque aberto contra a democracia. Nunca se viu um ditador ou regime opressivo embaraçado por essas revelações, que atingiram gravemente muitos líderes e instituições legítimas e civilizadas. Pode dizer-se que o foram justamente, devido às transgressões divulgadas. Mas será que esta publicação melhorou a democracia? Ou terá apenas servido para aumentar a desconfiança institucional, minando as bases da sociedade e da liberdade?
Edward Snowden já tem filme autobiográfico por reputado realizador, pelo que se pode dizer-se oficialmente um herói. Mas será? A National Security Agency realizava várias operações de vigilância ilegal, o que é altamente reprovável e devia ser denunciado às autoridades competentes. Mas não foi isso que Snowden fez. Ao realizar o que alguns especialistas consideram a maior fuga nos serviços de informação norte-americanos, ele chamou a atenção para o problema, mas fez muito pior. Se tivesse roubado aqueles segredos para os comunicar aos russos ou à Al-Qaeda seria considerado por todos um traidor. Mas foi isso exactamente o que ele fez. O facto de, além de informar os inimigos da liberdade, nos ter dito também a nós não reduz, antes aumenta a gravidade da traição. A larga maioria da acção da NSA é não só meritória, mas vital para a defesa da sociedade americana, existindo, pelos vistos, uma pequena parte que é abusiva e criminosa. É espantoso que ela saia como acusada, sendo o herói um homem que, na esmagadora maioria da sua acção, teve efeitos desastrosos para a segurança da sociedade americana, com apenas uma pequena parte positiva. Vivemos numa época doentia, que leva o seu ódio ao sistema a este nível suicida. É em ambientes assim que Hitler, Mussolini ou Trump florescem.
No antigo Oeste americano havia um crime tipificado como assalto à diligência do correio. No meio de todos os delitos, este continha uma abjecção adicional, por ser regra básica da decência não se lerem cartas que não nos são destinadas. Imagina-se as celebrações de deboche, à volta da fogueira, divertindo-se os bandoleiros com as confidências alheias. Ao menos, porém, eles e toda a gente sabiam que estavam a fazer uma coisa nojenta. Que dizer agora quando temos jornais alegadamente respeitáveis numa orgia de revelações à volta dos chamados Panama Papers? Dado que esses não passam de um roubo maciço da correspondência de uma firma de advogados, como é possível que o International Consortium of Investigative Journalists considere a sua divulgação como algo legítimo e razoável? Será este saque de correio alheio e, para mais judicial, verdadeiro "jornalismo de investigação"? Será que agora qualquer pessoa que roube o carteiro passa à condição de paladino desde que divulgue o que surripiou a um jornalista? Se há crimes graves revelados nessa documentação, ela deverá ser entregue às autoridades, que analisarão se a prova é admissível. Mas quando jornalistas tomam a justiça nas próprias mãos, caímos numa condição inferior à do Faroeste. Pior ainda, o que em geral se relata não são transgressões, mas meras listas das pessoas presentes nos ficheiros. Nesse caso fica-se difamado pela simples infracção de ter escrito a um advogado. A ética jornalística já anda há muito barbaramente maltratada, mas, mesmo assim, este episódio desceu mais um degrau na espiral de abjecção da imprensa.
Estes factos são deploráveis. Mas mais grave é não só não serem deplorados, mas exaltados em nome dos direitos humanos. Nunca esqueçamos que os abusos da liberdade de expressão são a melhor ajuda aos inimigos da liberdade de expressão.

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