Mistérios do Orçamento

JOÃO CÉSAR DAS NEVES   DN  27-05-2016

Para variar da sua série policial favorita, a leitura do Orçamento do Estado tem uma comparável dose de enigma e emoção. Para isso tem de desligar das lutas habituais, em defesa de interesses, e ler os documentos.
O primeiro mistério é o que lá não está. Ao contrário do que temia a generalidade dos analistas, neste ano não há Orçamento rectificativo. Afinal, o governo conseguiu mesmo cumprir o que apresentara nas contas de Fevereiro. Isto é um grande mistério porque os tais especialistas não estavam errados. O próprio documento admite que o crescimento deste ano não será os 1,8% previstos mas apenas 1,2% (o FMI diz 1%, a Universidade Católica 0,9%). Certamente por isso, uma grande quantidade de valores orçamentados falhou a meta. Ainda pelas contas do governo, a receita corrente ficará 1,9% abaixo do previsto e a receita total 1,7%. Do outro lado, as despesas com pessoal e prestações sociais, maiores fatias dos gastos, subiram ambas 0,5% face ao orçamentado. Por isso, o défice total acabou 10% maior, falhando a promessa de descer para 2,2% do PIB; mas por pouco, ficando nos respeitáveis 2,4%.
Como foi isso possível? Esquadrinhando as 255 páginas do relatório do Orçamento fica-se sem resposta. Aqui, o mistério só se resolve com a perspicácia de um Holmes ou Poirot; a qual, depois de explicada, parece óbvia. Lendo o Effective Action Report, texto que o ministério tem de enviar para Bruxelas, nota-se que as suas singelas 11 páginas estão cheias de um assunto quase omisso nos textos em português: as cativações, despesa prevista mas não autorizada. O governo confidencia pressurosamente aos inspectores comunitários que 1572,5 milhões de euros do que prometeu gastar, metade da redução conseguida no défice, afinal era só a fingir, ficando congelados à partida. Este foi o passe de mágica que permitiu realizar a contradição de garantir a eliminação da austeridade e o cumprimento das metas: fazer despesas sem gastar dinheiro; cumprir promessas sem registar perdas.
Quanto às contas para 2017, alguns álibis são habituais. O projecto assegura que para o ano, finalmente, a dívida pública descerá em percentagem do PIB, promessa feita nos últimos quatro orçamentos, apesar de ter mais do que duplicado desde 2001, subindo todos os anos, excepto em 2007 e 2015. Mas o artifício mais importante está nas próprias medidas políticas. O Orçamento promete, simbólica e corajosamente, reduzir o défice total em exactamente um terço do seu valor, de 4538 para 3015 milhões de euros. Mas, como garantiu subir salários e pensões e cortar no IVA e IRS, o défice aumenta mais de 4%. Mesmo com medidas imaginativas, como a subida do esquecido imposto sobre o álcool e as bebidas alcoólicas, que prejudica os restaurantes, aos quais desceu o IVA, o défice sobe 191 milhões. E então? Eis que surgem inesperadamente uns "outros efeitos" que valem 800 milhões e "cenário macroeconómico", que acrescenta mais 900 milhões, e lá se consegue o valor desejado. Que são estes estranhos elementos? A lupa do detective descobre a nota do Quadro III.1.1. do relatório, explicando que o primeiro inclui "os dividendos do Banco de Portugal, a recuperação da garantia do BPP e poupanças em juros e em PPP", enquanto o segundo "incorpora os impactos da evolução macroeconómica na receita fiscal e contributiva e na despesa". São rubricas conjecturais, com o mesmo propósito das cativações. A política do governo, inspirada por promessas eleitorais a favor de grupos de interesse, prejudica a situação financeira nacional. Depois, um inesperado golpe de teatro consegue aquilo que a audiência julgava impossível. No final, esta estratégia de truques só pode falhar e arruinar o país, mas é sem dúvidas emocionante.
O aspecto mais misterioso do Orçamento é também a vantagem incomparável deste governo: não se ouvem protestos, não há manifestações nem críticas dos que tanto barafustavam contra a austeridade. Os serviços sofrem uma cativação de 1,5 mil milhões de euros e ficam calados; a receita total sobe mais do que o produto interno, mas o povo aceita; a economia está exangue, com crescimento anémico e quase sem investimento, e tudo continua calmo. Desapareceram os urros de indignação de anteriores orçamentos por coisas semelhantes a estas. A resposta para o enigmático silêncio não surpreende: os manifestantes participam da maioria. Para ter o PCP e o Bloco do seu lado não é preciso acabar com a austeridade; basta ter o PCP e o Bloco do seu lado. Afinal, comprar a paz social é fácil. Veremos por quanto tempo.

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