Se eu fosse

João Taborda da Gama
DN 20160403
Na primária as composições tinham o mote se-eu-fosse. Se eu fosse um malmequer, se eu fosse uma vaca, se eu fosse jardineiro, se eu fosse isto, se eu fosse aquilo, uma andorinha de certeza, o São Martinho (ou o mendigo, ou a capa), um astronauta talvez. Hoje já não é tanto assim. O método chamado da "auto-referenciação sugerida" (inventei agora o nome, mas de certeza que tem um nome, e um nome que não deve andar muito longe deste) tinha vantagens, não só desenvolvia algum egocentrismo na criança (pode, pode vir daí), mas obrigava a pormo-nos na pessoa do outro. E pormo-nos no corpo do outro, no seu coração, nos seus olhos, na sua cabeça, é a única coisa que conta. E isto é mais uma coisa que devo à escola primária do Lumiar n.º 31, à Professora Alcina e ao pedagogo que se lembrou disto, no dia em que a freguesia do Lumiar celebra 750 anos (é, conta certa; sim, as coisas evoluiram muito desde 1266).
O padroeiro do Lumiar é S. João Baptista, o homem que batizou o primo Jesus (primo dele, pelo lado da mãe) no rio Jordão, e que comia mel e gafanhotos, mas parece que os gafanhotos não eram bem gafanhotos, foi engano do tradutor, eram alfarrobas ou bolo de mel, mas podem bem continuar a escavar na Palestina à procura de tabuínhas com a ementa do Santo, que para mim e para os meus filhos há-de ser sempre gafanhotos. S. João Batista também é conhecido por lhe terem cortado a cabeça, que foi servida numa bandeja de prata. Quem quiser ver, a melhor estampa é a do Cranach, de 1510, e está no Museu Nacional de Arte Antiga; a Salomé, muito sensual e bem arranjada, casaquinho de peles, a segurar na bandeja, ruborizada mas láctea, ao mesmo tempo segura e tímida. Na bandeja a cabeça do S. João Batista como a de um animal, ou seria o S. João Batista, ou seria uma cabeça, porque não há pessoa quando se corta a cabeça. Isto, já perceberam, são as inquietações da Julia Kirsteva no Visions capitales : Arts et rituels de la décapitation um livro de 2013 a propósito de uma exposição no Louvre com representações de cabeças cortadas, e um ensaio magnífico sobre o tema. E qual a imagem da capa da edição francesa do livro? Isso mesmo, o João Baptista das Janelas Verdes. Kristeva diz que Cranach se foca em Salomé e que esta está séria porque percebe que o seu ato é a representação do início de um tempo novo do Ocidente. E, seu eu fosse Salomé, o que teria pedido a Herodes?
Na Igreja Ortodoxa, a posição de São João, o Precursor, é teologicamente central. Nessas bandas, há uma outra cabeça cortada muito relevante, a de Yevgeny Rodionov. Há vinte anos, e no dia em que fazia dezanove, o jovem soldado russo foi decapitado na Chechénia por se ter recusado a retirar um crucifixo que usava ao pescoço. Rapidamente se transformou num santo, não reconhecido pela Igreja Ortodoxa como tal, mas assim venerado pelo povo, com abundantes ícones de novo mártir. No livro Silêncio, de Shuzaku Endo, uma obra prima de 1966, também traduzida em português, e que este ano vai estrear num filme de Scorsese, Sebastião Rodrigues, jovem jesuíta português, é enviado ao Japão a ver o que lá se passa com um padre mais velho. No fim da história é colocado perante o dilema de pisar uma imagem de Cristo para libertar uma série de cristãos que estavam a ser torturados, um dilema que tem de atravessar quase sempre sozinho, sem um Deus audível por perto. Uma voz fala-lhe pouco antes e diz-lhe para pisar a imagem (seria Deus? Seria a cobardia?). E ele pisa a imagem e os cristãos são libertados. Estamos em 1639 , época de grande perseguição aos cristãos no Japão, muitos desses mártires já canonizados. Se eu fosse Yevgeny, tinha tirado a cruz? E se eu fosse Sebastião tinha pisado a imagem?
Claro que isto de cortar cabeças é coisa dos bárbaros dos muçulmanos e dos samurais dos japoneses. Mas há tempo, nem muito, nem pouco, aqui mais perto de nós, na Alemanha, cortou-se a cabeça de um católico, Franz Jägerstätter, que se recusou a combater no exército nazi. Franz era casado, tinha três filhas, sabia o que o esperava, mas recusou-se sempre a alistar-se, mesmo depois de lhe terem prometido que não teria de combater. O seu exemplo de desobediência influenciou a doutrina da Igreja Católica sobre a paz e levou ao reconhecimento da objeção de consciência no Concílio do Vaticano II, na constituição pastoral Gaudium et Spes. Muitos perguntaram pelos seus deveres de marido, de pai, pelo dever à vida, mas o Arcebispo Roberts, um jesuíta inglês muito curioso, pressionou até que não se pudesse recuar. Franz foi beatificado em 2007. Se eu fosse Franz, teria sido firme até me deitarem na guilhotina?
O pacifismo de Franz Jägerstätter vinha-lhe de um primo que era Testemunha de Jeová e cuja fidelidade ao pacifismo Franz admirava. Coisas que é bom recordar numa época em que muito facilmente se puxa da palavra seita para arrumar estes ou aqueles.
Olhando cem anos para trás, uma coisa que marca a vida daqueles que nasceram aqui depois de setenta e quatro é não terem atravessado nenhuma guerra. Nem a primeira, nem a segunda, nem a do ultramar, nada. Tempos de paz, de crescimento. Mas as cabeças cortadas voltaram a invadir-nos a vida, com o terrorismo islâmico e a sua máquina mediática, cada vez mais dentro de portas. Toda a gente tem respostas, eu tenho apenas uma pergunta. E se eu fosse um jovem de Molenbeek? Ou mesmo da Ameixoeira, às portas do Lumiar?

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