O escorpião da fábula

João César das Neves
DN 2016.04.28

Uma das ideias mais simples e influentes da nossa vida política foi formulada há muitos anos pelo Dr. Mário Soares. Apesar de evidente, ela precisa de ser relembrada, pois é fácil esquecer. Depois do 25 de Abril, analisando os motivos por que todas as revoluções e regimes de esquerda tinham até então falhado em Portugal, o futuro presidente explicava que isso se devia ao facto de essas forças terem sempre atacado a Igreja e os militares.
Por motivos ideológicos, em geral de forma gratuita e alheia às necessidades da situação concreta do momento, os governos esquerdistas sentiam-se na necessidade de criar conflitos e embates com as estruturas eclesial e castrense. Estes problemas acabavam por dominar a agenda governamental, avassalando a conjuntura política e derrubando o poder revolucionário. A lucidez da observação é facilmente confirmável, não apenas pelos desastres antigos, mas também, inversamente, pelo sucesso da revolução de 1974, que pela primeira vez quebrou a tradição histórica. Precisamente por ter tomado uma atitude moderada e conciliatória com as esferas religiosa e militar, o regime de Abril conseguiu implantar-se, alcançando solidez e permanência únicas na democracia portuguesa.
A tese hoje parece ultrapassada na cordial convivência das últimas décadas. Mas ela traduz também a enorme dificuldade que a esquerda portuguesa sempre tem em resistir à tentação de provocar embates com a fé e as armas. Como o escorpião da fábula, que não evita picar o sapo que o leva às costas a atravessar o rio, a natureza impõe-se, mesmo que signifique a própria destruição.
O actual governo ainda não tem seis meses, mas conseguiu já criar problemas novos e graves precisamente nesses dois campos. Pior, esses percalços são tão escusados e gratuitos, tão alheios às reais dificuldades nacionais, que têm de provir de tendências profundas. Todos sabem como a situação do país é complexa, com múltiplas questões sérias e delicadas exigindo resposta urgente. A condição minoritária do executivo é, por si só, forte motivo de dificuldade adicional. Seria de esperar prudência, equilíbrio e sensatez, evitando conflitos espúrios. Mas o instinto do escorpião fala alto.
Demissão de um chefe do Estado--Maior do Exército constitui uma das situações mais graves que um ministro da Defesa pode enfrentar. Espera-se que isso só surja perante acontecimentos ímpares e dramáticos. Neste caso tratou-se de simples declarações do subdirector do Colégio Militar numa reportagem, que poderiam indiciar eventual clima de discriminação contra homossexuais nessa escola. Não houve queixas, vítimas, culpas, provas, nem sequer caso, tratando-se de mera situação hipotética. Sabemos que a homossexualidade é hoje um tema fundamentalista e explosivo, mas mesmo assim uma situação destas daria, quando muito, algumas conversas em blogs. Que se tenha invocado a Constituição e rompido a carreira de militares competentes é tão absurdo que só se explica por instintos ideológicos viscerais. É verdade que a questão da homossexualidade nas forças armadas é complexa e difícil. Assim ficou pior.
O ataque à Igreja é mais subtil e destruidor. O ministro da Educação já mostrara desrespeito democrático e institucional ao mudar as regras de avaliação com o ano lectivo em andamento. Mas a forma prepotente como está a tratar os contratos de associação com as escolas privadas raia a infâmia: atropela acordos assinados, perturba o ensino das crianças, prejudica a vida das famílias pobres, gera desemprego de professores. Além de prejudicar a própria função ministerial, pois os acordos são uma das formas mais baratas, eficazes e preferidas por alunos e famílias de o Estado cumprir a sua missão educativa. Só mesmo caprichos dogmáticos e obediências abstractas podem justificar tal atropelo, com um governo que se diz inimigo da austeridade a acabar por impor aquilo que nem a troika fez à educação. A medida parece genérica, contra as escolas privadas, o que permite o cinismo de o maior ataque dos últimos anos contra a presença da Igreja Católica na sociedade fingir neutralidade.
Estas duas atitudes são tão despropositadas, artificiais e abstrusas que se duvida da solidez intelectual dos políticos que as assumem. Portugal luta, no meio da corrente, em grande perigo de se afundar. A finalidade do governo devia ser ajudar o país a chegar à margem, não dificultar. Só que, como no escorpião que morre afogado junto com o sapo que o transporta, o instinto por vezes fala mais alto do que a racionalidade.

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