O país a navegar em águas mansas

MANUEL CARVALHO Público 01/05/2016

E ao fim de cinco de cinco meses de Governo, a política portuguesa mergulhou no tédio e no torpor.

Perante tanta monotonia e previsibilidade, custa até perceber o que quer dizer o presidente quando adverte que “Portugal não pode continuar a viver sistematicamente em campanha eleitoral”. Ao contrário de muitas expectativas, o mundo não acabou, o PSD é hoje um bloco sem alma, os mercados não atacaram os títulos de dívida, a Europa e o FMI têm mais que fazer, a “geringonça” não se desequilibrou nem caiu, o primeiro-ministro anda cheio de gás, o presidente continua a estar na televisão todos os dias e, com um pouco de enlevo da celebração de Abril, aqui o rectângulo à beira mar plantado até parece a monótona e previsível Noruega.
Faz bem à alma viver assim, sem sobressalto. Um “indiferentismo” semelhante ao que levava Almeida Garrett a lamentar a falta de entusiasmo cívico instalou-se entre nós. Se fosse uma consequência de uma real tranquilidade, podíamos perceber. Mas não é. Esta estranha atmosfera de acalmação sugere pelo contrário a bonança que antecipa as tempestades.
Olhemos para o Programa de Estabilidade e para o Programa Nacional de Reformas e percebamos que não há ali nada que se ajuste ao sentido de urgência que o país continua a exigir. Não há reformas a sério no Estado. Os principais esforços de consolidação orçamental são inconsistentes e postergados para o futuro. Os cenários macroeconómicos são de um optimismo enternecedor. As medidas de controlo da despesa não vão muito para lá de abstractas propostas de poupança nos consumos intermédios. Os aumentos de receitas não passam de enunciados vagos aos quais falta o quê, o quando e o como. O Presidente bem avisou no seu discurso do 25 de Abril que é preferível a “rectificação das perspectivas” do que a “negação dos factos”, mas no estado de modorra e de satisfação em que nos encontramos é melhor esquecer avisos que exigem dor e boiar ao sabor da sensação de que, agora, com este Governo “estamos um pouco mais aliviados”, como disse Vasco Lourenço, presidente da Associação 25 de Abril.
Aliviados com quê? Sem dúvida que o fim da sobretaxa do IRS nos aliviou. Ninguém discute que a função pública recuperou a sua aura de poder e influência que a troika havia vergado. Mas só com muito talento e empenho em apregoar boas novas é que o Governo consegue instalar a ideia que o país respira saúde, que há um tempo novo tão ideologicamente poderoso como o dos amanhãs que cantam. Não há e o pior é que não se vislumbra ao virar da esquina qualquer solução alternativa. O Governo não faz reformas profundas e tenta iludir-se e iludir-nos com expectativas porque as dificuldades que enfrenta são maiores do que o seu poder e do que a sua ambição. São até dificuldades maiores que o poder e a ambição do país.
Sem determinação, meios, ideias, consistência e coragem para mudanças profundas que arriscavam a deixar feridas irreversíveis num tecido social e económico fragilizado, o Governo, o PCP e o Bloco tergiversam. Ora se devotam a proclamações de fé num modelo económico em que poucos acreditam, ora de dedica a cultivar a percepção de que a vida não se faz só com contas, com défices e com dívidas e espalha pelo ar uma lufada de ar fresco. O fim dos prémios em horas extra entregues por Nuno Crato às melhores escolas do país, que ameaçava criar um hiato ainda maior entre as boas e más escolas do ensino público é disso exemplo. A crença de que à esquerda basta impedir a direita de governar para que o mundo pule e avance, também. Perante as dificuldades, faz falta o devaneio ideológico. “Este Abril é também um regresso. Pode ser tímido, mas não deixa de ser um regresso. Desde logo à normalidade democrática”, dizia num momento de particular inspiração o deputado José Luís Ferreira, de os Verdes.
Andam todos a jogar para o empate, à espera que o jogo acabe. Sobreviver à conjuntura tornou-se a prioridade dos partidos. O CDS porque antes de ir a votos precisa de enterrar a dependência orgânica de Paulo Portas e afirmar a proposta mais fresca e menos populista da sua nova líder. O PSD porque entre os seus militantes persiste a crença de que a história do lobo mau contada para justificar a violência do ajustamento era afinal uma fábula que este governo desmontou facilmente. O PCP, o PS e o Bloco porque precisam de ter mais tempo para provar que as suas propostas são realistas, patrióticas e amigas dos portugueses – se depois acontecer alguma coisa, a culpa há-de ser da conjuntura, da Europa ou do capitalismo predador que impede alternativas democráticas e de esquerda.
É pelo facto de todos cultivarem esta estranha conivência de interesses tácticos que a política portuguesa se acomodou na atonia e no marasmo. Discutir as contas do Programa de Estabilidade? Nem pensar. Perceber como vai o Governo cobrar mais 210 milhões de euros em impostos directos ou, mais difícil ainda para um programa de esquerda, saber como vai cortar 150 milhões em programas sociais são indagações incómodas para quem está bem nas águas paradas. Por isso a maioria não quis levar o Programa de Estabilidade, um documento crucial para o nosso futuro, à aprovação no Parlamento. Por isso o PCP diz através do seu secretário-geral que não apoia o Programa de Estabilidade sem que essa recusa liminar o leve a pedir contas no Parlamento - ao mesmo tempo, em Bruxelas, o PCP reclamava “um processo de renegociação das dívidas públicas”. Por isso Catarina Martins se arroga a dizer que é contra as “imposições europeias” sem que se decida contrariar em público uma vírgula do alicerce maior dessas “imposições”, o Programa de Estabilidade.
Se a direita está paralisada, se a comunicação social está no geral embevecida (excepto o jornalismo militante de O Observador), se o país prefere assobiar para o lado perante a desproporção entre os desafios do país e a terapia que o Governo lhes aplica é em boa parte porque se instalou a crença de que não há alternativa melhor no actual contexto. Basta olhar para o lado, para a Espanha, para constatar que o sistema partidário português, principalmente à esquerda, foi capaz de “engolir sapos que parecem doces” (a expressão é de António Leitão Amaro, do PSD) para garantir o precioso bem da estabilidade política. Com a frente interna no marasmo, com a estabilidade garantida pelo tacticismo e não pela coerência de um projecto político com apoio maioritário no Parlamento, só um choque externo pode agitar as águas e romper os equilíbrios precários. Portugal precisa muito de estabilidade e necessita imenso de consensos. Mas é de estabilidade para agir e de consensos para tomar medidas difíceis. Para quem quer um barco amarrado ao porto até o vento é dispensável.

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