Concessões portuárias

João Taborda da Gama
DN 2016.05.29
O timing do acordo alcançado na madrugada de sábado entre os operadores portuários e os estivadores não vem nada a calhar, já tinha a coisa meio escrita e agora é preciso dar uma volta ao texto. Bem podiam ter anunciado a coisa no domingo. O texto ia começar com Rui Reininho ("se o mercado impera e somos todos iguais // muito cuidado quando escorregas sempre cais // se o mercado emperra e vais sempre longe demais demais // atenção cuidado voltas ao cais") e acabar num sofá.
No site do IKEA está anunciado que, em virtude da greve da estiva, o envio de encomendas para os Açores e para a Madeira vai ficar mais caro. Um exemplo real das consequências da greve prolongada, dos seus efeitos sobre a economia, que é uma maneira de dizer as pessoas que querem comprar um sofá no IKEA, ou na IKEA, dependendo dos gostos, onde de certeza que os nomes dos modelos de sofás em tecido, não modulares, são escolhidos nas páginas amarelas dos portos escandinavos (Norsborg, Knislinge, Stocksund).
A luta dos estivadores é um fenómeno histórico conhecido, bem como as características da classe profissional. Em dez anos, houve cem greves em Portugal - quanto custaram à tal economia? Alguém fez esta conta? Trezentos milhões por mês? Por ano? Os números desfilam com pouco ou nenhum rigor, mas essa conta havia de ser feita.
Mas parece que já há um Acordo de Paz Social, um APS, ou à PS, esperemos que de vida mais longa do que aquele anunciado em janeiro, de poucas horas. Tudo leva a crer que sim, e a querer que sim também. Um pequeno milagre, e nisto da estiva é preciso milagres, desde a greve dos estivadores de Londres de 1889 que só terminou com a intervenção divina, pela intercessão do cardeal Manning, que foi o mediador da coisa e conseguiu um acordo. A sua intervenção, e o desfecho, abriu a porta para a consagração explícita dos direitos dos trabalhadores na encíclica Rerum Novarum (a Raquel Varela me desculpe estar para aqui a misturar a greve de 1889 com a Igreja Católica na mesma linha, mas, vá, já passa). Que concessões houve e de quem?
Para perceber a greve dos estivadores, e a sua força, convém ler o The Box: How the Shipping Container Made the World Smaller and the World Economy Bigger, de Marc Levinson. Entre várias coisas conta como resistiram por todas as formas à introdução dos contentores. O contentor foi, fiquei a perceber naquele livrinho, uma das invenções mais importantes da civilização, revolucionou o transporte, cortou custos, alterou cidades, zonas ribeirinhas, a indústria, tudo pela standardização das medidas e formato do transporte por oposição ao embrulho e embrulhinho, caixa, fardo, que reinava mundo fora. E os maiores opositores de tudo isto foram os estivadores, que temiam perder o trabalho (não serve de muito dizer emprego, porque a forma de organização do trabalho era sobretudo à jorna e através de mecanismos de subcontratação/leilão pouco dignos). Mas no pós-guerra, a grande vitória da classe é, em troco da paz relativa em torno da automação e dos contentores, a criação de carreiras altamente privilegiadas e autocontroladas no acesso, e a sua cristalização, tentando proteger, por lei, uma classe da evolução, do futuro.
São as consequências dessa luta - as benesses da classe na remuneração, na organização do trabalho, na proteção tribal ao acesso por terceiros - aliadas a uma cultura própria da estiva, que geram uma falta de simpatia generalizada pela classe. No livro de Levinson, para ilustrar a perceção pública sobre os estivadores, relata-se a anedota inglesa segundo a qual um estivador foi apanhado a roubar uma barra de ouro, e a sanção aplicada foi descontarem-lhe o valor da barra de ouro do ordenado seguinte. Tudo isso também muito presente no Há Lodo no Cais (que no Brasil se estreou como Sindicato de Ladrões...). Ao contrário do que se passa com greves de professores, funcionários públicos, ou médicos, ninguém está verdadeiramente ao lado dos estivadores (a não ser algum romantismo que grassa em institutos de investigação laboral, e a natural hipocrisia e oportunismo dos partidos à esquerda). Mas a maior prova que os estivadores pouco apoio têm nessa mesma esquerda vê-se no facto de a ministra do Mar e o primeiro-ministro se terem permitido responder-lhes com voz grossa, sem medo do Bloco nem do PC. Se o acordo será aceite, se será cumprido, vamos ver. Se a história é uma boa bola de cristal, até ao verão temos outra greve e mais à frente teremos outro acordo.
Mas mais do que as concessões da greve importa discutir as próprias concessões dos portos, e a falta de competitividade dos nossos portos em relação aos espanhóis. João Carvalho, presidente da Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT) foi há umas semanas ao Parlamento chamar a atenção para o facto de os prazos mais curtos de concessão dos nossos portos nos colocar numa desvantagem em relação a Espanha e outros países. Estender o prazo das concessões é um imperativo que permitirá maiores investimentos de capital, maior competitividade, maior rapidez nas entregas, menores custos. Também para os compradores dos sofás IKEA. Nas ilhas e no continente. É assim quando o mercado impera, e somos todos iguais.

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