In memoriam

P. Gonçalo Portocarrero de Almada | Observador 7/5/2016

Ninguém pode ter a desumanidade de acusar de falta de valor quem, ante a iminência de uma morte muito dolorosa, deseja antecipá-la. Mas maior é a coragem de quem resiste até ao fim.

Três vultos maiores da cultura portuguesa desapareceram nestes últimos dias: Querubim Lapa, Carlos de Pontes Leça e Paulo Varela Gomes.
Do primeiro, já muito se disse e escreveu: resta-me referir a obra multifacetada de quem preenche, segundo os especialistas, uma posição central na história da cerâmica moderna portuguesa e a quem tanto deve a cidade de Lisboa. Descanse em paz!
O segundo foi um conhecido musicólogo e programador musical, sobretudo como director-adjunto e consultor do serviço de música da Fundação Calouste Gulbenkian, director-adjunto da revista Colóquio-Artes, editada pela mesma Fundação, e ainda como director artístico do Festival “Música em Leiria”. Carlos de Pontes Leça especializou-se no “estudo e divulgação da ópera dos séculos XIX e XX, na estética da música contemporânea e nas relações entre música e cinema”, segundo comunicado da Fundação Calouste Gulbenkian. Foi também autor de textos ensaísticos publicados pelo Teatro Nacional de São Carlos, pela revista Colóquio-Artes, pela Cinemateca Portuguesa e pela Fundação Juan March. Também desenvolveu intensa actividade como conferencista, nomeadamente sobre Fernando Lopes Graça, autor do ‘Requiem pelas vítimas do fascismo’, na Casa da Música e em Paris, tanto no Centro Cultural Calouste Gulbenkian como na Salle Gaveau.
Como fiel que era da prelatura do Opus Dei, cumpre-me prestar aqui a minha sentida homenagem, não apenas ao excepcional homem de cultura, mas principalmente ao homem de fé e amigo de longa data, de quem tanto aprendi e com quem tive o privilégio de conviver em inumeráveis ocasiões. Até sempre, Carlos!
Do terceiro – “extraordinário historiador de arte e pioneiro da história da arquitectura”, segundo Vítor Serrão – os meios de comunicação social também já fizeram inúmeras referências. Mas, mesmo correndo o risco de as repetir, quero saudar a coragem da sua conversão ao catolicismo, bem como a bravura da sua vitória sobre a tentação de desistir da vida.
Paulo Varela Gomes foi um intelectual de reconhecido mérito, desde cedo empenhado na actividade política, nomeadamente como comunista. Mas a evidência da prática ditatorial dos regimes marxistas, contrária aos mais elementares direitos humanos, bem como o repetido fracasso das suas políticas socio-económicas, não lhe foi indiferente. Com efeito, segundo António Guerreiro, quando conheceu “o comunismo real e presente”, não gostou “do que viu” (Público, 1-5-2016). Paulo Varela Gomes sabia que, ao abandonar a militância comunista, corria o risco de ser votado ao ostracismo pelas elites bem-pensantes; mais ainda se aderisse, como foi o caso, à Igreja católica, a “bête noir” da extrema-esquerda e não só. Mas fê-lo, com a frontalidade de quem ousou pensar pela sua própria cabeça e a coragem de quem publicamente sempre assumiu a sua conversão, sem nunca se deixar manietar pelos puritanismos do politicamente correcto.
Da sua vitória sobre a morte, muito haveria a dizer, se ele já não tivesse dito tudo no seu impressionante testemunho (Morrer é mais difícil do que parece, 10-4-2015, in revista Granta, nº 5), tantas vezes evocado, também por ocasião do seu passamento. Um depoimento que ganha uma especial actualidade, porque agora a tentação da eutanásia corre sérios riscos de ser institucionalizada em Portugal.
Para Paulo Varela Gomes, a terrível morte de um canceroso não era mais uma questão especulativa, sobre a qual dissertasse numa amena mesa redonda. Para ele, essa dolorosa realidade era, como ele sabia com absoluta certeza, o seu futuro imediato. Sabia da iminência da execução da inapelável sentença que já lhe tinha sido decretada: “cancro na otofaringe com tumor na cadeia linfática cervical posterior e metástases no pulmão. Não operável. Tratamentos em doses muito altas de quimio e radioterapia para, daí a dois a quatro meses, deixar de poder comer ou respirar”. É fácil falar da morte dos outros, mas a coisa muda de figura quando é a própria vida que está em jogo.
Ninguém pode ter a desumanidade de acusar de falta de valor quem, ante a iminência de um óbito precedido de terríveis dores, se sente atraído pela sedutora miragem de uma morte antecipada. Mas maior é a coragem de quem resiste até ao último momento. Com efeito, já tinha iniciado os preparativos do seu suicídio, quando sentiu “de repente uma vaga de alegria inexplicável, como se fosse um sinal da presença de Deus à semelhança daqueles que os textos sagrados referem por vezes”. Foi já com um enorme contentamento e “a vida a fervilhar em todas as veias, mesmo as estragadas” que pousou a arma no chão e regressou a casa.
“Quando a vida manda mais em mim do que a morte, amo os que me amam, e cresce de repente no meu coração a maré da vida”, escreveu mais tarde o suicida falhado. Atrás da porta, “sufocada de pavor e lágrimas”, esperava-o sua mulher, como esperavam também os quatro romances e o livro de crónicas que depois escreveu: um derradeiro hino à vida e uma lição de esperança. Sobretudo, esperava-o Deus, que dele esperava também a coragem de viver e amar até ao fim. Bravo, Paulo Varela Gomes!

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