Voltemos ao fado

Miguel Sousa Tavares, Expresso, 20160130

Na manhã seguinte a ter sido eleito, Marcelo Rebelo de Sousa revelou já ter 1800 SMS de felicitações no seu telemóvel. Isso significa que há, pelo menos, 1800 felizardos que tinham o número de telefone privado do candidato. Eu julgo que não haverá nem 180 que tenham o meu e, se houvesse, ficaria preocupado: corria o risco de me confundirem com o Miguel Relvas ou de me tomarem por candidato à Junta de Freguesia.
Mas não tiremos o mérito a Marcelo: foi das mais brilhantes, inteligentes e minuciosas campanhas para se fazer eleito a que já assisti. É claro que tudo seria diferente se Guterres tem ido a jogo, mas Marcelo não é responsável por quem não estava e limitou-se a tratar dos que estavam ou queriam estar, com uma subtileza e frieza de cálculo de verdadeiro mestre de xadrez. E os termos em que o fez garantem-lhe uma independência futura e uma liberdade de actuação de que nenhum Presidente antes dele beneficiou. Esse é o seu principal trunfo e a sua principal responsabilidade: Marcelo não tem desculpas para não ser um bom Presidente.
Judiciosamente anunciado no dia seguinte às eleições, o veto de Cavaco Silva à lei de co-adopção por casais homossexuais, trouxe-nos de volta à política de todos os dias. Tivesse-o anunciado três dias antes e o Presidente-eleito não teria podido escapar a ser confrontado com a sua posição pessoal e política sobre o assunto — o tipo de coisa de que Marcelo sempre fugiu e não apenas na campanha eleitoral. À parte esse pormenor, eu assino por baixo das razões invocadas por Cavaco para o seu veto político — quer as de forma quer as de substância. Quanto às razões de forma, Cavaco tem toda a razão quando diz que não houve nenhum debate sério, nem na sociedade nem no Parlamento, sobre uma tão determinante alteração do direito de família. O que houve apenas foi a decisão de uma maioria circunstancial que impôs imediatamente a sua vontade, conjugando o activismo da extrema esquerda “fracturante” à cumplicidade politicamente correcta e calculista do “novo PS” de António Costa: um governo vale bem uma missa pelo lobby LGBT.
E, quanto à substância do que está em causa, Cavaco visa certeiro quando argumenta que os direitos de e lésbicas não são a questão principal a ter em conta na co-adopção, mas sim os direitos das crianças adoptadas. Neste momento, não é possível, com seriedade, pretender que haja estudos fundamentados que apontem num ou noutro sentido — porque os casos em vigor são recentes demais e porque os estudos que existem partem sempre de um preconceito de base dos seus autores, sem jamais se darem a um trabalho de sapa de visitarem o dia-a-dia das crianças, as escolas onde estão ou a vizinhança onde se movem para recolherem dados minimamente credíveis. O estimável jornal “Público” — que, nestas matérias, é sempre um farol do bem-pensar (e, ele próprio, um exemplar da co-adopção editorial, tal a sua manifesta falta de testerona na Redacção) — citava, há dias, dois destes tipos de “estudos”. Num deles, a Ordem dos Psicólogos concluía, sem mais, “não encontrar diferenças relativamente ao impacto da orientação sexual no desenvolvimento das crianças” — assim varrendo, de uma simples penada, milénios de erros de percepção acumulados. Outro estudo citado, da autoria de dois psicólogos da Universidade do Porto, apoiado numa “revisão efectuada de um conjunto de estudos” (quais e porquê revistos?), ia ainda mais longe, concluindo que a dita revisão “permitiu mesmo constatar que duas mulheres exercem a parentalidade de forma mais satisfatória, em algumas dimensões, do que um homem e uma mulher” — coisa que, como é sabido, a natureza confirma todos os dias, seja nos linces da Malcata, nos pandas da China ou nos mosquitos da malária. Apenas falta aos psicólogos uma pequena ajuda da ciência, conseguindo dispensar o papel do esperma masculino na criação das espécies humanas, para atingirmos o mundo perfeito em que o homem se torna capaz de corrigir as regras politicamente retrógradas da natureza.
Nem a direita mais conservadora alguma vez foi tão intolerante como esta “esquerda fracturante”
Isto é o que eu penso, mas, obviamente, posso estar errado, obliterado por séculos de doutrinação judaico-cristã — em que, por acaso, não acredito e nunca me determinou. Mas o que acho extraordinário é a intolerância desta “esquerda fracturante” para quem pensa diferente. Nem a direita mais conservadora alguma vez se atreveu ao bullying intelectual que estes iluminados exercem sobre todos os que não comungam dos seus facilitismos sociológicos, como se fossem donos da verdade e detentores de um saber superior, alicerçado nos seus “estudos” incontestáveis. Quando eles saltam em cima do veto de Cavaco Silva, classificando-o como “mesquinhez política” e predispondo-se a renovar de imediato o voto parlamentar, sem mais qualquer reflexão ou debate, mostram duas coisas: uma, o desprezo pelas opiniões políticas de um Presidente, em matéria que não é de governação, como se ele não passasse de um notário do regime democrático; outra, a soberba com que tratam as opiniões divergentes, com a legitimidade que lhes dá o seu estatuto de “vanguarda” leninista dos costumes. Quer uma quer outra das atitudes são demonstrativas da visão unilateral que eles têm do jogo democrático e daquilo a que Francisco Assis chamou, e bem, “o discurso perigosamente populista do Bloco de Esquerda, que tem de ser combatido”.
Primeiro, foi o anterior governo que nos fez acreditar que a sobretaxa do IRS iria ser substancialmente reduzida, já em 2016, por via da execução da receita fiscal: antes das eleições, eram devolvidos 35%, depois das eleições 0%. Depois, foi o programa de Governo do PS que prometia devolver, para todos, a totalidade da sobretaxa em dois anos: mas, depois das eleições, passou a metade e só para poucos. Mas, mesmo assim, essa devolução vai ser financiada pelo aumento do imposto sobre os combustíveis, o tabaco e o imposto de selo. Ou seja, o grosso dos contribuintes, não só não vai ter qualquer redução da sobretaxa, como ainda vai ter de pagar pela sua redução a favor de uns poucos. A seguir, descobrimos o aumento encapotado do IMI, através da “actualização do factor de localização dos imóveis”: quem mora no centro das cidades vai pagar mais — uma ideia genial para contrariar a desertificação dos centros urbanos, que tanto lamentam oficialmente. E, por último mas só para já, é a história da confirmação electrónica das facturas dos contribuintes em nome individual — um trabalho ciclópico a que poucos se podem dedicar e cujo objectivo final é diminuir as deduções e, por essa via, aumentar o IRS. Mesmo à mão armada, há ladrões com muito mais estilo que o Estado português.
Como não conseguiu encontrar “uma cara engraçadinha” e levou nova sova eleitoral, o PCP — Jerónimo o disse — vai lançar mão da sua arma habitual: provar na “luta” a força que as urnas não lhe dão. Para tal, o melhor aliado do partido é, como sempre, a CGTP. O preço a pagar por essa ajuda é que agora já não é o partido que manda na CGTP, mas o contrário. E não é o PCP que sustenta António Costa, mas o contrário: é Costa, subscrevendo todas as reivindicações dos sectores sindicais mais próximos do PCP (Função Pública, Educação, Transportes), quem mantém o PCP à tona de água. Mas, como não há milagres e dizem que Deus não dorme, um dia o PS vai pagar isto muito caro. Até lá, pagaremos nós.

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