Não gostavam do Crato? Ora tomem lá o Tiago

Observador 14/1/2016

Não está em causa apenas uma escola mais facilitista ou reverter medidas de Nuno Crato. O novo modelo de avaliação é muito pior do que isso, é o regresso ao ministério dos professores, não da Educação
O ministro tinha de se explicar. O ministro explicou-se. E é caso para dizer: era melhor que não o tivesse feito. Porque agora não restam dúvidas: aquilo que pomposamente foi designado de novo “Modelo integrado de avaliação externa das aprendizagens no Ensino Básico” corresponde à destruição de um sistema que, passo a passo, vinha a ser construído desde o ano 2000, de governo em governo e mesmo quando mudavam as maiorias. De todo o edifício sobrará apenas um pilar: os exames nacionais no 9º ano, aqueles que seria demasiado escandaloso eliminar face ao legado histórico do próprio Partido Socialista. Do resto não restará pedra sobre pedra.
Para compreender o alcance e a gravidade deste diagnóstico é necessário ler o parecer que o Conselho Nacional da Educação (CNE) fez a pedido da Assembleia da República e o comunicado que o ministro divulgou na passada sexta-feira: em parte alguma bate a bota com a perdigota.
1. A grande reviravolta
Comecemos pelo tema das sucessivas mudanças no sistema de avaliação. É verdade que elas existiram e que, durante as primeiras duas décadas a seguir ao 25 de Abril, foram fruto da total destruição de tudo quanto antes existia e de uma sucessão de experiências bizarras, algumas delas de muito má memória (como a PGA).
Mas, no que respeita ao ensino básico, a partir de 1999/2000 as coisas começaram a mudar, pois as alterações que foram sendo introduzidas iam sempre no mesmo sentido – sendo que se contarmos o despacho de 2000 que cria as primeiras provas de aferição e com o último despacho de Nuno Crato, que introduz apenas uma pequena alteração no exame de inglês do 9.º ano, estamos a falar de 13 alterações. Ou seja, começou-se por introduzir provas de aferição que nem eram gerais nem obrigatórias, depois passou-se para provas de aferição para todos os alunos e por fim chegou-se ao modelo em que havia um exame no final de cada ciclo de ensino. Foi uma evolução coerente, mesmo podendo ser discutível que a prova no final do 1.º ciclo devesse ser um exame ou apenas um teste de aferição.
Esta evolução não aconteceu por acaso, como se percebe lendo o parecer do CNE: as provas de aferição nunca foram levadas muito a sério pelas escolas, pelos professores, pelos alunos e pelas famílias. De facto, como aí se escreve, “o facto de tais classificações não terem efeito sobre as avaliações finais não conseguiu transformar estas provas em oportunidades de mobilização e responsabilização dos agentes educativos”. Ou seja, como não contavam para nada, ninguém se incomodava com elas.
O que agora se pretende fazer não é apenas fazer uma ligeira marcha-atrás neste processo, trocando os exames por provas de aferição no final de cada ciclo – o que se quer fazer é acabar com qualquer tipo de prova no final do 1.º e 2.º ciclos e introduzir novas provas, apenas de aferição, a meio desses ciclos, nos 2.º, 5.º e 8.º anos. Ou seja, muda mesmo tudo. Pelo que é redondamente falsa – para não dizer que é uma mentira despudorada – as afirmações do ministro Tiago Brandão Rodrigues e do seu secretário de Estado João Costa de que a instabilidade foi introduzida pelo anterior Governo.
Não: a instabilidade está a ser criada neste preciso momento, quando a meio de um ano lectivo uma equipa ministerial decide, sem dar ouvidos a ninguém, alterar os planos das escolas e dos professores, mudar a duração do período escolar e trocar as voltas às expectativas dos alunos e das suas famílias. Com o segundo período já em andamento, há regras novas em cinco dos nove anos do Ensino Básico: é obra. E é uma palhaçada irresponsável, um imenso desrespeito por todo o sistema escolar e todos os seus agentes.
2. Mentiras que não resistem à prova dos factos
Pergunta-se então: porquê a pressa? E a resposta surge tão célere como descabida: é para salvar a escola de um modelo “errado e nocivo”. E pronto, está explicado. Não chega? Querem mais? Então fiquem a saber que esse modelo era “errado e nocivo” porque induzia “exclusão” e, crime dos crimes, promovia a “cultura da nota”. Tudo isto porque, acrescentou o ministro no parlamento, há uma diferença entre “aprender” e “treinar”.
Nada disto faz qualquer sentido. Primeiro, porque nenhum dado empírico sustenta estas alegações. Depois, porque a filosofia de educação que o ministro parece defender (ou papaguear, pois não se percebe bem se tem sobre a matéria um pensamento estruturado ou se apenas repete uma lição aprendida anteontem, pois está sempre a matraquear as mesmas frases e até se gaba do seu “eco”…) nem sequer chega a ser o velho e relho “eduquês”, é apenas um molho de palavras para destruir 15 anos de evolução do sistema educativo no sentido de uma maior exigência e uma maior responsabilização das escolas e dos professores.
Mas já lá vamos. Goste ou não o ministro, a verdade é que é mentirosa a ideia de que, com exames, ocorrem fenómenos de exclusão ou qualquer promoção do elitismo. Socorro-me de novo do documento do CNE, pois esse organismo independente foi olhar para os números e verificou que apenas entre 0,3% e 1,9% dos alunos que chegavam com nota positiva ao exame final acabavam o ano com uma média negativa. São números que falam por si: a nossa escola “elitista” selecciona, afinal, cerca de 99% dos alunos. Olhar para esta realidade e falar de “exclusão”, como tem feito a equipa ministerial e a extrema-esquerda parlamentar é pior do que risível: é um atentado à inteligência.
Não fiquemos por aqui. Ao longo destes anos Portugal também tem participado em testes internacionais, realizados em dezenas de países – os testes PISA –, e o que eles nos mostram é uma evolução positiva. O mesmo se tem vindo a passar com as notas dos exames nacionais, como se sublinha no parecer do CNE. O que significa que o tal modelo “errado e nocivo” que tem de acabar de um dia para o outro não está, afinal, a dar maus resultados, mesmo podendo e devendo ser melhorado, seguindo algumas das boas sugestões constantes desse mesmo parecer do Conselho Nacional da Educação.
3. Uma agenda política corporativa e radical
Mas claro que nada disto conta quando a agenda política é outra. Nessa altura passa-se por cima de tudo e de todos. Basta pensar num pequeno detalhe para o perceber: a Comissão Parlamentar de Educação pediu ao CNE que se pronunciasse sobre estas matérias até 8 de Janeiro, mas depois não esperou por ele: a 23 de Dezembro a Assembleia aprovou, em plenário e com os votos de toda a esquerda, dois dos projectos-lei (os relativos ao fim dos exames de 4.º ano) que tinham sido enviados para avaliação. É pior do que falta de educação, é um sinal de arrogância e, também, de fanatismo ideológico. A realidade não interesse, o que pensam as escolas e os especialistas também não, apenas interessa o preconceito dos iluminados que se sentam na metade esquerda do nosso Parlamento.
Há uma frase que resume bem, pela sua carga retórica e pelo sua falsificação da realidade, o que se pretendeu com estas medidas. Recordemo-la: “Os exames são peça chave das políticas de elitização, tendo por objetivo realizar, precocemente, uma selecção destinada a diferenciar percursos escolares, discriminando alunos a quem não foram proporcionados os apoios adequados ao sucesso”. Está lá tudo: a elitização (que não existe), a selecção (que é marginal), a suposta descriminação social (outra falsidade a que já irei) e até o alegado desinvestimento na escola pública. Podia ter sido dita na comissão parlamentar pelo ministro ou por um dos seus secretários de Estado, pois até articula melhor os argumentos do que as suas tiradas contra a “cultura da nota”. Mas não: a frase é da Fenprof de Mário Nogueira, e acho que está tudo dito.
Na verdade o que está em causa nestas mudanças não é a construção de um modelo destinado a promover “a melhoria das aprendizagens e o sucesso escolar dos alunos”, como se escreve no comunicado do Ministério. O que se pretende é desarticular um sistema que, a pouco e pouco, ia tornando as escolas mais responsáveis pelos resultados os seus alunos e os pais mais conhecedores dos resultados comparados. Tudo isso sempre foi anátema para os sindicatos e para o seu condottieri, tudo isso passou agora a ser também o programa da equipa de Tiago Brandão Rodrigues (e digo da equipa e não do Governo, pois não era isto que estava no programa do PS ou mesmo no programa deste executivo).
Há de resto detalhes neste programa e frases no comunicado oficial que mostram bem que o que se pretende é voltar a dar todo o poder à máquina da 5 de Outubro e aos interesses corporativos dos professores e sindicatos.
Primeiro exemplo: uma das ideias do Ministério é produzir uma “Ficha Individual do Aluno” com “um descritivo detalhado do desempenho e as classificações por domínio ou tema”. Essa ficha constituir-se-á depois “como suporte das estratégias diferenciadas que integrarão a prática letiva subsequente”.
Reparem bem. No final do ano lectivo, um miúdo de 7 ou 8 anos, no 2º ano, é submetido a um teste de aferição – um dos tais que sempre foram desqualificados pela escola, pelos professores e pelos pais – e, depois de uma ou duas horas de prova, o examinador dirá ao professor que acompanhou a criança durante todo o ano que estratégia deve seguir no ano lectivo seguinte. Não me recordo de nada tão megalómano e descabido como esta Ficha Individual do Aluno, o que só pode ter um significado: não é para levar a sério, é poeira para os olhos. Para além de revelar uma mentalidade centralista quase estalinista: é o Estado central que faz as fichas e é esse mesmo Estado central que determina qual a estratégia correcta para as “aprendizagens” de cada aluno.
Mas esta “ficha” ajuda-nos a perceber melhor a forma como está redigida uma outra frase do comunicado, esta relativa aos propósitos da avaliação, a qual deverá, e cito, “fornecer informações detalhadas à escola, aos professores, aos encarregados de educação e aos alunos sobre o desempenho destes”. A palavra-chave aqui é “destes”. Sendo que os “estes” são os alunos, não a escola nem os professores.
É um detalhe revelador. Um dos objectivos das provas introduzidas a partir do ano 2000 era o de aferir a qualidade relativa das escolas, permitindo primeiro ao ministério e, depois, quando os resultados passaram a ser públicos, às famílias e à comunidade educativa, identificar onde estavam as escolas que precisavam de apoio, ou mesmo aquelas em que o corpo docente era mais frágil. Ao transferir a “aferição” exclusivamente para o aluno e para a sua ficha, o novo regime deixa de ter entre os seus objectivos fornecer informação capaz de permitir avaliar as escolas e os professores.
É caso para gritar: Bingo! Aqui está o motivo do júbilo de Mário Nogueira. Aqui está também o cerne desta obsessão com a destruição de um edifício que vinha a ser construído há quase duas décadas. Aqui está também a explicação para a bizarria de querer fazer desaparecer as provas de final de ciclo, isto é, as provas que são realmente comparáveis, e aquelas que, ao mesmo tempo, mais exigem a alunos e professores.
4. Um Cavalo de Troia na 5 de Outubro?
O que está em causa não é pois a troca de um modelo mais exigente por outro mais facilitista, e muito menos a motivação é “corrigir” o legado de Nuno Crato – o que está realmente em causa é o regresso aos tempos em que o Ministério da Educação era uma espécie de “comuna dos professores” (e dos seus sindicatos), uma casa onde tudo girava em torno dos seus interesses e visões corporativas, das suas carreiras e privilégios, e onde os alunos e as suas famílias não passavam de carne para canhão e de argumento para novas reivindicações.
O que está em causa é criar um modelo que, por querer destruir a “cultura da nota” e pretender criar a ideia de que o esforço, a memorização e o “treino” não são “aprendizagens”, vai acabar a criar muito mais segregação no sistema de ensino. Porque haverá famílias que não irão nesta lengalenga do novo ministro, pois sabem que uma boa e exigente educação é indispensável a um bom futuro profissional, e outras que talvez nem abram a carta com a “Ficha Individual do Aluno”, pois nem entenderão o que lá virá escrito.
É muito triste que isto esteja a acontecer 40 anos depois de Sottomayor Cardia, o primeiro governante a subir ao último andar da 5 de Outubro como membro de um governo constitucional, ter enfrentado, com coragem e determinação, uma realidade que, de acordo com a lenda, o fazia dar pulos de desespero no seu gabinete gritando que, dali para baixo, naquele enorme edifício, estava tudo tomado pelos comunistas contra os quais ele, como socialista, tinha lutado em defesa da liberdade durante os dias mais perigosos do Verão Quente de 1975. Agora é lá em cima, nesse mesmo último andar, que parece habitar uma espécie de desajeitado clone de Mário Nogueira, alguém para faz figura de Cavalo de Troia para reintroduzir, disfarçadamente, ideias e práticas que sucessivos ministros da Educação levaram muitos anos a combater. Um combate que se iniciou precisamente com Sottomayor Cardia e teve sempre a oposição dos eternos manifestantes que fizeram da 5 de Outubro o “manifestómetro” de Lisboa.
Posso, e até desejo, estar enganado, mas depois de dois dias a ouvir o novo ministro da Educação e o seu secretário de Estado, quer-me parecer que não exagero.

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