Religião e política no Churchill College


Começa amanhã no Churchill College, em Cambridge, um colóquio internacional sobre religião e política. O tema pode parecer um pouco bizarro no mundo secularizado, alguns diriam pós-religioso, em que é suposto vivermos na Europa. Mas a Inglaterra sempre foi um pouco bizarra, por padrões continentais, e talvez o objectivo desse colóquio seja preservar uma bizarra tradição.
Duas bizarras tradições estarão aliás no centro dos trabalhos. Uma é a chamada Church of England, uma instituição a muitos títulos paradoxal. Trata-se de uma igreja oficial num país que aprovou a Magna Carta, em 1215, declarando logo de entrada que "A Igreja deve ser livre" (relativamente ao poder secular, estava subentendido). Outra curiosidade reside no facto de a Igreja Anglicana não ser exactamente católica nem protestante, chegando ao ponto de ter incluído  "anglicanos católicos" (na chamada "High Church") e "anglicanos protestantes" (na chamada "Low Church").
A outra bizarra tradição que estará em debate é a americana. Esta é ainda mais surpreendente aos olhos do continente europeu. Foi aliás um observador do continente, Alexis de Tocqueville, quem melhor captou e tentou entender a bizarria americana - hoje também designada por "excepcionalismo americano".
Em 1835, Tocqueville viu na América o futuro democrático do continente europeu e do mundo cristão em geral. A realidade ultrapassou as suas expectativas: a era democrática não se estendeu apenas à Europa e ao mundo ocidental. Após a derrota do nazismo e a implosão do comunismo soviético, a democracia afirmou-se como o regime de referência no mundo. As democracias não têm hoje de explicar por que são democráticas. São as não-democracias que têm o ónus de explicar por que o não são.
Este é um desenvolvimento que Tocqueville teria certamente visto com simpatia. Mas ele também alertou para que o futuro democrático poderia seguir duas vias: liberal ou despótica. Na América, ele procurou detectar os factores que permitiam à democracia americana ser liberal, em vez de despótica. Alguns desses factores são conhecidos de todos: a descentralização e o sistema político de freios e contrapesos; a estrita independência e autoridade do sistema judicial; a arreigada liberdade de expressão, com uma imprensa particularmente rebelde e insubmissa; a forte tradição de autogoverno local.
Mas os dois factores a que Tocqueville atribuiu importância decisiva são ainda hoje relativamente pouco conhecidos no continente europeu: a "arte de associação" espontânea dos americanos, e a conjugação americana entre "espírito de liberdade e espírito de religião".
Um elemento crucial une, aos olhos de Tocqueville, estes dois factores: o pluralismo. A arte de associação, voluntária e espontânea, permitiu aos americanos criar aquilo que hoje designamos por sociedade civil independente do Estado. "Sempre que, à cabeça de um novo empreendimento, possais ver em França o governo e na Inglaterra um aristocrata, podeis estar certos de que nos Estados Unidos encontrareis uma associação".
A variedade de associações descentralizadas constitui uma fonte de pluralismo e uma poderosa barreira à tendência monista da interferência estatal. Tocqueville vê este mesmo efeito na forte religiosidade dos americanos. Ela constitui uma reserva de energias não controláveis pelo Estado. Neste sentido, para Tocqueville, a liberdade religiosa constitui um freio e contrapeso adicional - e em seu entender crucial - para refrear e limitar a voragem expansionista do poder de Estado.
Mas Tocqueville atribui ainda duas outras consequências, não intencionais e não desenhadas, à religiosidade americana. Uma delas consiste no que chama "elevação do olhar". "Nas épocas de fé, o objectivo final da vida é colocado para além da vida. (...) Quando estes mesmos homens se envolvem nos assuntos deste mundo, os mesmos hábitos (da vida religiosa) podem ser identificados na sua conduta (...). Não mudam de dia para dia em perseguição de um qualquer novo objecto de desejo, estabeleceram antes desígnios que jamais se cansam de perseguir".
Esta elevação do olhar proporcionada pela religião produz uma terceira consequência não intencional: a adopção voluntária de uma ética de autocontrolo. Tocqueville não pretendia dizer que só a religião poderia gerar uma ética de autocontrolo. Mas seguramente argumentou que era uma das suas principais fontes. Max Weber retomaria um ponto de vista semelhante. Mas Edmund Burke já tinha alertado antes para o mesmo problema: "Todas as sociedades precisam de um poder de controlo vindo de algum lugar: quanto menos ele vem de dentro, da adopção voluntária, mais ele virá de fora, da imposição de um poder central".

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António