Ensaio sobre a cegueira

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2013-11-25

Um povo ama intensamente as suas ilusões. Poucos querem saber a verdade acerca do que repetem com convicção sabendo, no fundo, ser falso. A sociedade moderna é aberta e tolerante, aceitando com bonomia multidões de heterodoxos e rebeldes. Mas revelar a realidade é intolerável, merecendo insulto e agressão, pois nada é tão repudiado como a voz da consciência.
A triste situação dos últimos anos é disso prova evidente. Portugal viveu décadas de grandezas a crédito, que só podia acabar numa crise terrível. Agora, quando a inelutabilidade da dívida nos apanhou, inventamos novas ilusões para nos eximirmos às responsabilidades e justificarmos a raiva contra os cortes inevitáveis. E ai de quem desmascarar essas tolices!
A perversa ilusão dos últimos vinte anos é hoje evidente. Qualquer observação honesta revela que um buraco deste tamanho só podia existir com cumplicidade de todos. Os gastos ruinosos foram repetida e democraticamente sufragados pelos eleitores. Todos beneficiámos e aplaudimos com vigor. Os avisos de insustentabilidade dos défices eram crescentes, de organizações internacionais e especialistas domésticos. Até ao último momento ninguém quis saber. Dias antes do fatídico 6 de Abril de 2011, a todos os níveis da sociedade, cada um ainda negava a exigência de mudar a sua vida.
Quando o choque rebentou e a primeira ilusão morreu, houve duas reacções. O povo em geral abriu os olhos e mudou mesmo de vida. Tem sido espantoso ver a atitude de famílias e pequenas empresas, que no meio de enormes sofrimentos, se desembrulham da terrível situação. Mas nas elites foi urgente construir novo mito que permitisse depositar a culpa em porta alheia, justificando os protestos. Afinal éramos todos inocentes e a maldade vinha de um punhado de corruptos incompetentes e da troika que nos ajudava. Esta segunda fantasia, em que todo o aparelho político-mediático anda apostado desde então, constitui uma magna operação de desinformação. E que se livrem de a contrariar!
O Estado, câmaras e instituições fazem o mínimo de reformas possível, esperando que tudo passe para se voltar ao mesmo. Grandes empresas, próximas do poder, gravemente atingidas pelas tolices antigas, aparentam uma normalidade oca. Em particular a banca, óbvia protagonista da crise financeira, assobia para o lado, empurrando o buraco com a barriga. A oposição, grande responsável da crise, grita indignada como se lhe fosse alheia, sem realmente apresentar uma verdadeira alternativa à austeridade. Apesar dos disfarces, a patente incapacidade de todas estas entidades em cumprir as suas funções sociais mostra a gravidade da situação.
Funcionários, médicos, professores e muitos outros grupos profissionais, que tanto ganharam nos anos fáceis, tinham de conhecer a trajectória ruinosa que os seus sistemas seguiam. Só com enorme cegueira voluntária podem agora indignar-se perante os cortes de despesas insustentáveis que acumularam diariamente sem denunciar. Pensionistas, subsidiados, munícipes e utentes quiseram acreditar nas benesess que políticos irresponsáveis lhes concediam, apesar de os défices funcionais mostrarem a evidência do embuste. Não só os aceitaram mas erigiram-nos em direitos inalienáveis, apesar de muito superiores às receitas e liquidados por dívida externa. Agora, dizer-lhes que os seus descontos não garantem os níveis prometidos gera fúrias incontroláveis. Os realistas têm de ser corruptos, neoliberais, hipócritas ou mentecaptos, pois nada é mais negativo do que a sinceridade num povo embevecido pela ilusão. A verdade é crime de lesa-pátria.
Neste mito colectivo a explicação comum para os cortes indispensáveis é que o Governo é perverso e incompetente e os parceiros europeus oportunistas. Estes, que nos emprestam uma fortuna no fundo do nosso buraco, são criticados pela sua solidariedade, pois exigem-nos aquilo que tínhamos de fazer de qualquer maneira. Deste modo um país de inocentes busca explicações mirabolantes para o mal que criou. Pois não há maior cego do que o que não quer ver.

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