Carta de amor ao Alentejo

A propósito da polémica levantada com o seu livro “Alentejo Prometido”, Henrique Raposo escreveu na edição deste sábado do Expresso uma crónica a explicar as suas motivações e justificações. 
HENRIQUE RAPOSO
Expresso, 2016.03.02

Primeira premissa: respeito o Alentejo, toda a minha família é alentejana, os alentejanos terão sempre em mim um aliado contra a parvoíce das anedotas; continuarei a escrever sobre o Alentejo até que os meus antepassados tenham a dignidade literária que merecem. Dignidade, essa, que não existe nas mitologias que se servem do Alentejo, o neorrealismo e a ideologia do turismo que reduz a zona mais interessante e trágica do país a uma espécie de Disneylândia do silêncio. Segunda premissa: escrevo há anos cartas de amor ao Alentejo; sucede que o amor não passa por esconder as partes negras do ente amado. Pelo contrário, só há amor verdadeiro depois de desenterrarmos os fantasmas. Terceira premissa: as redes sociais servem cada vez mais como fator de censura e autocensura do jornalismo que escreve no osso, do pensamento crítico, da liberdade literária. Sei do que falo. Volta e meia, sou usado como homem de palha em autos de fé por essa internet fora. 
Esta semana tudo começou por causa do meu novo livro, “Alentejo Prometido”, uma viagem às minhas raízes alentejanas (região de Santiago do Cacém). Fui ao programa “Irritações” e, em conversa com Pedro Boucherie Mendes, não escondi o lado duro do livro. 
Sim, eu podia ter contextualizado melhor as histórias que contei; falar na TV não é o mesmo que escrever e, às vezes, não percebo isso. Mas, seja como for, nada justifica o ódio internético de milhares de pessoas que nem sequer leram o livro. Nada justifica a intifada, até porque “Alentejo Prometido” não conta nenhuma novidade de fundo, apenas cruza uma história familiar (a minha) com três factos documentadíssimos da história do Alentejo. 
Primeiro: a violência oitocentista demorou imenso tempo a desaparecer no Alentejo; o símbolo deste clima de violência e desconfiança, o maltês, marcou a paisagem alentejana até meados do século XX. O meu bisavô materno foi maltês. 
Segundo: existia uma subcultura de bastardia no Alentejo, fruto de um abjeto marialvismo que via a mulher como propriedade privada dos desejos do homem da casta superior. As minhas avós e bisavós estão entre as vítimas desta violência marialva. Terceiro: o Alentejo, sobretudo o Alentejo litoral, apresenta uma taxa de suicídio altíssima e, acima de tudo, desenvolve uma cultura que romantiza o suicida. Ouvimos a toda a hora coisas como “não estou aqui a fazer nada, vou-me matar”, “aquele matou-se, eu também me matava se me tivesse acontecido o mesmo”. Ora, julgo que tenho o direito de me sentir incomodado e distante em relação a este traço alentejano. 
Contudo, isso não significa desrespeito pelo Alentejo. Pelo contrário. “Alentejo Prometido” é uma carta de amor. Sim, é uma carta de separação, mas não deixa de estar ancorada no amor. 
Quem ler o livro não pode duvidar disso. Nem pode duvidar de outra coisa: procuro dar espessura e sofisticação a esta região, que me parece a mais interessante e misteriosa de Portugal; procuro retirar o alentejano da caricatura patusca e mole feita pelo resto do país. Com ou sem intifadas na internet, vou continuar a fazer isto — sem nunca esconder o lado trágico e negro dos meus antepassados.

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