Entrevista de vida a Nicolau Breyner (1940-2016): “Sou um imaturo”

Expresso 14.03.2016 às 16h56

Há um Portugal que cresceu a vê-lo no ecrã. E ele cresceu com esse Portugal que o estimava. Que o seguia. Nicolau Breyner, 75 anos, deixa um dos legados mais preciosos dos que viveram: uma obra. Há alguns anos, concedeu ao Expresso uma entrevista de vida, que agora republicamos no dia em que o perdemos

Como é que se define? É um ator, um realizador, um produtor, um artista?
Um artista. E um artista tem de ser sobretudo um humanista e, como tal, tem de estar preocupado com a Humanidade e com o que mais o toca.
É uma pessoa de afetos?
Sem dúvida. Sou um homem muito mais de afectos do que de inteligência pura e dura. Felizmente, hoje em dia já se fala muito do Q.E. (Quociente Emocional) e não só do Q.I. (Quociente de Inteligência), o que é fundamental, sobretudo em Portugal.
Porquê em Portugal?
Acho que nós, portugueses, somos muito emotivos. Foi sempre uma grandeza nossa. Mas às vezes já vejo o português a perder esse grande capital, que não devia diluir-se.
A que se poderá dever esse fenómeno?
A esta máquina que nos consome, nos tritura e nos atira para os desempregos, para a competitividade profissional, a luta permanente para ser o melhor, para vencer, uma luta constante que nos desumaniza.
Sente essa competitividade mais feroz no meio artístico?
Tenho a noção que sim, que neste momento o meio é mais competitivo. Mas tenho uma grande sorte. Ser mais velho também tem um lado bom, e neste caso é o facto de eu já ter saído dessa competição. A idade colocou-me noutro patamar, num patamar onde estamos cada vez menos. Mas vejo os mais novos a competir entre si. É a luta pelo lugar ao sol. Justifica-se e não acontece só aqui. Nos Estados Unidos, em França, em Inglaterra é ainda pior. Só que, nesses países, depois de se chegar lá acima, há um lugar compensador. Aqui não. Aqui lutamos por um lugarzinho medíocre.
Como assim?
Portugal tem uma industriazinha de cinema, uma industriazinha de produção, uma industriazinha de sei lá o quê. É que a nossa cultura sempre foi olhada com um sorriso. Quando ouvem falar dela, seja quem for que estiver no poder, levam a mão ao bolso, como se alguém lhes quisesse tirar o dinheiro. Nunca pensam que a cultura é um capital.
Durante a sua carreira, foi prejudicado por isso?
Não falo apenas de mim. A verdade é que ninguém encarou o cinema português como devia ter sido encarado, ninguém pensou nem pensa em fazer uma indústria séria de cinema português. O Instituto do Cinema e Audiovisual faz o que pode, e tem feito muitíssimo, penso eu.
Mas não chega...
Não, porque para o cinema português vingar é preciso conseguirmos fazer filmes que vão para fora e fazer cinema apetecível para o grande público. Ao mesmo tempo, será necessário existir um instrumento estatal capaz de fazer a sua divulgação além-fronteiras. É um produto que se vende, como o Mateus Rosé!
Quando diz cinema apetecível fala em filmes com sucesso de bilheteira, como por exemplo o «Call Girl», em que participou há pouco tempo, e separa-os do cinema de Manoel de Oliveira, que acaba de ganhar a Palma de Ouro em Cannes?
São gostos.
Põe todos no mesmo saco ou divide-os em termos dessa indústria por que anseia?
Acho que para haver cinema de elite tem de haver primeiro cinema comercial. É o cinema comercial que ganha dinheiro para depois se fazer o chamado cinema de autor. O que se passa é o processo inverso, porque existe um preconceito muito português que classifica tudo o que faz sucesso ou é comercial de mau e tudo o que é não comercial de bom. O que é uma mentira total.
Qual é a sua leitura de ambos os géneros?
É simples. Quando falamos de grandes filmes não lhes atribuímos géneros.
Participou nos últimos quatro filmes mais polémicos e mais vistos em Portugal nos últimos anos («Corrupção», «Call Girl», «O Crime do Padre Amaro» e «Os Imortais»). São grandes filmes?
Acho o Call Girl um belíssimo filme, e o António-Pedro Vasconcelos é um grande cineasta em qualquer parte do mundo.
Foram todos filmes que levaram os portugueses às salas de cinema...
Claro. Isso diz muito e faz-me abrir um sorriso de orelha a orelha. Esse facto prova que nenhum desses filmes pode ser considerado menor. Aliás, o Corrupção é do João Botelho, que é um realizador intelectual. Por outro lado, tenho visto filmes ditos de cinema de autor que são execráveis e indefensáveis. Esses ninguém quer ver...
E, enquanto actor, também não participa neles...
Nem sequer sou convidado. Não é uma coisa que me preocupe. Só no ano passado fiz sete filmes. É muito.
Como é que selecciona os filmes em que participa?
Só selecciono aqueles de que gosto. Apaixono-me pelas coisas e faço-as. Mas também, vamos ser claros, sou um profissional e tenho de trabalhar para ganhar dinheiro.
Disse que tinha participado em sete filmes só num ano. Isso não significa que a indústria cinematográfica portuguesa está mais viva?
Graças a estes filmes.
E os produtores já ganham dinheiro?
Nalguns casos, já.
É preciso parar de pensar na subsídio-dependência?
É urgente. Mas para que isso aconteça é preciso pensar numa forma de criar a tal indústria. Não é difícil. O país é um estúdio, temos bons técnicos e bons actores. Até lá, terá de haver subsídios, sobretudo para os jovens autores.
Foi a pensar nessa indústria que se aventurou agora, pela primeira vez, como realizador de cinema em «Contrato»?
Exactamente.
A experiência da televisão ajudou-o?
Imenso. Tenho horas e horas de televisão em cima que me ajudaram mesmo muito. É que, quando começámos a fazer novelas, saíamos para a rua só com uma câmara de exteriores, o que é uma grande escola.
Vinte e cinco anos depois, «Vila Faia» volta ao pequeno ecrã com nova roupagem. Como é que olha para os primórdios da novela portuguesa?
Foi uma aventura lindíssima. Penso que, até agora, foi mesmo a maior aventura profissional da minha vida.
O que é que guarda na memória?
O não carreirismo e a cumplicidade das pessoas... Era realmente uma equipa em que todos jogávamos para marcar o golo... E marcámos.
Nessa época, as novelas da Globo eram consideradas indestronáveis...
Toda a gente nos dizia que estávamos doidos, que não era possível...
Mas foi...
Foi, porque eu e o Daniel Proença de Carvalho, à época presidente da RTP, éramos dois loucos. Um dia, cheguei ao pé dele e disse-lhe para fazermos uma telenovela, e estava à espera que ele me respondesse para só voltar a falar com ele quando não tivesse bebido, mas ele disse-me que achava bem no minuto a seguir. Uns dias depois, veio-me perguntar se já tinha avançado com o projecto. De repente, eu e os outros sócios da Edipim, na altura, vimo-nos com a menina nos braços, cheios de medo.
Era assim tão assustador?
Era, era. Lembro-me que, quando acabámos de assistir ao primeiro episódio, se fez um silêncio enorme e só depois vieram os risos e os aplausos, mas eu só pensava nos 89 episódios que faltavam. O que nos valeu foi a tal equipa cheia de vontade.
A história também teria os ingredientes certos?
As histórias de novelas são como os bolos: se os ingredientes estiverem na proporção certa, vão ao forno e saem bem. Quando se começa a querer inventar muito sobre a receita, dá sempre mau resultado. A novela é um género. As pessoas querem ver aquilo, quando não vêem ficam defraudadas e não gostam.
A seguir à «Vila Faia» houve um hiato, e só de há dez anos para cá as novelas portuguesas venceram definitivamente as brasileiras. Porquê?
Por minha culpa, também. Criei uma coisa chamada NBP (Nicolau Breyner Produções) e resolvi fazer novelas portuguesas. E fizemos. Lembro-me de já nessa altura ter a convicção de que, um dia, elas iriam ultrapassar em audiências as brasileiras. Disse-o e chamaram-me utópico, visionário... mas aconteceu.
Era fácil de prever?
Era. As pessoas gostam de ver histórias com as quais se identifiquem. Nós temos a nossa realidade, as nossas figuras-tipo, os nossos sítios característicos.
A novela não é já uma fórmula esgotada?
É. O público de televisão é o público mais infiel que existe, então o português é de uma infidelidade total. Por isso, é urgente procurar outras fórmulas.
Quais?
Séries como "O Equador", já em rodagem, por exemplo, ou os telefilmes.
Séries, telefilmes, «sitcoms», é por aí?
É tudo isso.
É a escola de televisão norte-americana que teremos de começar a seguir?
É fundamental que enveredemos por aí.
Está disposto a apostar também nessas áreas?
Estou sempre disposto a apostar em tudo. Tenho um grave problema na minha vida, que é a minha imaturidade mental.
Imaturidade?!
Sim, sou imaturo, na medida em que estou sempre disposto a embarcar em aventuras. Odeio rotina, por isso, passado algum tempo de estar a fazer uma coisa, começo a pensar no que vou fazer a seguir, e tem de ser qualquer coisa diferente.
Tem saudades do teatro?
Não muitas. Digo isto com remorsos, porque devo tudo ao teatro. Foi lá que aprendi tudo, é uma escola insubstituível. Mas, para mim, o palco sempre foi muito pesado, por ter de fazer todas as noites a mesma coisa.
Ainda há pouco falava em imaturidade. Como é que a associa ao prémio de carreira que recebeu no Festróia?
Não parece possível associar as duas coisas. Os prémios de carreira significam que estamos a caminhar para o fim. Eu não sinto isso. Ainda me apetece fazer muita coisa.
Que tipo de coisas?
Não sei. Nunca as procuro, elas é que vêm ter comigo. Parece estranho, mas nunca planeei um ano da minha vida profissional e nunca me faltou trabalho.
Isso é um privilégio...
É. Sinto-me um grande privilegiado.
Entrevista publicada no Atual de 2 de agosto de 2008

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