Respeitar Cavaco

Henrique Raposo
Expresso, 2016.03.12

Enquanto a corte de Lisboa continua a patética coroação de Marcelo, the first, convém recordar o papel de Cavaco. Nunca fui cavaquista. Há ali uma frieza aritmética que não agrada ao meu palato mais propenso a vulcanidades sá-carneiristas. Aliás, o cavaquismo congelou durante décadas a emancipação da direita. Mas isto não me impede de sublinhar o papel notável de Cavaco. Em primeiro lugar, a sua mera presença revelou um abjeto snobismo das elites de Lisboa, quer de esquerda quer de direita; passados trinta anos, muita gente ainda não ultrapassou Boliqueime. Em segundo lugar, Cavaco liderou o país na fase dourada da democracia. Foi o primeiro-ministro mais decisivo da nossa história recente, dirigindo o momento de maior fulgor reformista. Reformismo esse que ainda está por completar. Depois de 1982 (Balsemão) e 1989 (Cavaco), falta um novo momento de europeização dos modelos sociais e económicos. Mas isso já é outra conversa. 
Os cínicos dir-me-ão que qualquer político saberia aproveitar a onda positiva daqueles anos (fundos europeus, investimento gerado pela relativa liberalização da economia). Admito que sim. Mas o certo é que Cavaco estará sempre associado ao período de maior prosperidade do regime democrático. Em quarenta e tal anos de democracia, Portugal só convergiu a sério com a Europa entre 1986 e 1992. Isto é um facto inegável, mas também é um tabu à esquerda e à direita. A esquerda não perdoa o sucesso eleitoral de Cavaco. E grande parte da direita não é mesmo capaz de superar os impulsos snobes criados no “Bananas” contra Boliqueime. É por isso, aliás, que eu nunca fui um devoto de “O Independente”. Nunca tive paciência para aquele impenitente snobismo lançado sobre o cavaquismo de “meia branca”. Verdade seja dita que Miguel Esteves Cardoso já fez um comovente mea culpa em relação a esta atitude amoral do ponto de vista ético e errada do ponto de vista empírico. Era amoral, porque o snobismo é uma espécie de desprezo engraçadista lançado sobre compatriotas que por acaso nascem em berços forrados a chita. Estava errada, porque o “Indy” lisboeta não compreendia a realidade do país e, por inerência, não percebia como é que milhões davam o seu voto a um político que trazia finalmente água canalizada, esgotos e eletricidade a muitas zonas do país. Além disso, existe esta suprema ironia: o “Indy” só foi possível devido ao clima de prosperidade económica gerado por Cavaco. 
E o que dizer de Cavaco como Presidente? O seu feitio é executivo e não presidencial, o que fazia adivinhar um certo desconforto. Parece-me, todavia, que o problema destes anos esteve mais na realidade europeia e nacional do que em Cavaco. Em primeiro lugar, o Presidente teve de enfrentar José Sócrates, inimigo da liberdade e amicíssimo de bancarrotas; teve de enfrentar a troika e a dureza do ajustamento; teve de enfrentar a geringonça disruptiva de António Costa. E, apesar das dificuldades, Cavaco tentou sempre a linguagem do consenso e das instituições. Não, o regime não está em crise por causa de Cavaco — um homem que terá na historiografia o respeito que não recolheu em trinta anos de imprensa.

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