Do querido líder ao grande líder, mas sempre, sempre com o líder

Helena Matos
Observador 2016.03.14

A judicialização da vida e da política é o preço que estamos a pagar por esta adaptação aos regimes democráticos do servilismo face aos queridos líderes que caracterizou os totalitarismos do passado.
Apesar de escrever crónicas há vários anos não sei bem explicar como escolho o assunto ou, mais complicado ainda, porque escolho um assunto e não outro.
Este texto esteve para ser sobre o estranho silêncio que se se abate sobre o teor das conversas entre Arons de Carvalho e José Sócrates. Afinal se é verdade – e quero acreditar que não é – que o vice-presidente da Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC) transmitiu ao antigo primeiro-ministro informações a que tinha acesso por estar na ERC o caso é muito grave. Mas (e admitindo que estas revelações são falsas) é igualmente inexplicável que essa vil acusação não seja denunciada e debatida. Da ERC e do Sindicato dos Jornalistas, até ao momento em que escrevo, não vi esclarecimento algum. E no mundo dos comentários de televisão e rádio ainda menos. O que se passa? Que afonia é esta?
Ia o caso assim disposto quando os porcos me saltaram ao caminho, literalmente falando, porque pretendia eu atravessar a Segunda Circular nas precisas horas em que os suinicultores constatavam não só que não iam conseguir chegar com os seus camiões ao Terreiro do Paço como também que por ali não restava ninguém além de um chefe de gabinete e de um remoto assessor para receber a delegação que os representava.
Face a tal situação, e a julgar pelo “manifestómetro” usado até às últimas legislativas, teríamos tido evento pelo menos para 24 horas: enquanto a manifestação dos suinicultores decorresse, nas rádios e televisões Arménio Carlos, Ana Avoila, inúmeros comentadores, bispos apresentados como “vermelhos” e populares em linha falariam de um governo cercado e de um povo revoltado.
O primeiro-ministro, andasse ele por onde andasse, teria de se pronunciar sobre os problemas do país rural que morria, dos suinicultores que iam fechar as explorações, dos sabores portugueses que mais uma vez se perdiam. Naturalmente de nada lhe valeria estar por Bruxelas ou qualquer outra paragem porque também ali o esperariam delegações dos manifestantes quiçá com bifanas a acompanhar.
Como é óbvio os porcos, mais os camiões dos porcos e os condutores dos camiões com os porcos teriam circulado pela capital. Caso a polícia tivesse a intenção de deslocar os manifestantes para longe do centro da cidade e da porta dos ministérios logo nasceriam mil denúncias de atropelo à liberdade. Note-se que à época os polícias andavam entretidos eles mesmos a galgar as escadas da Assembleia da República, logo não só lhes faltava o tempo para desviar manifestações como tal propósito lhes surgiria como anti-democrático! Naturalmente, o ministro da Agricultura, depois de não receber a delegação dessas forças vivas da nação, seria dado como o ministro mais que remodelável de um governo mais que cercado.
Pois é, mas tudo isto era no tempo antigo. No tempo novo a rua deixou de ser o país a falar. É simplesmente a rua. E em escassas horas, um silêncio igualmente espesso abateu-se sobre a manifestação dos suinicultores.
Dir-se-á que até aqui nada de novo: o tradicional enviesamento de esquerda das redacções e da opinião publicada leva a que aquilo que nos outros é muito naturalmente considerado defeito, à esquerda seja visto como feitio. Pois assim foi, assim é, mas na verdade terá de deixar de ser porque se assim continuar a ser, pagaremos um preço caríssimo. Afinal a indulgência para com os dirigentes leva não só a que estes se tornem numa caricatura daquilo que foram mas também que a demagogia e o populismo que caracteriza alguns deles só sejam desmascarados quando e se algum caso de corrupção se lhes atravanca no caminho.
Não é por acaso que neste momento antigos líderes de esquerda como Sócrates e Lula são associados a casos de corrupção. E que acabam reduzidos a uma espécie de farrapos gesticulantes no meio de revelações constrangedoras sobre os seus actos. Direi mesmo que isso é inevitável e que vai acontecer com outros líderes de esquerda.
Manejando com destreza e muita cor local o discurso do “Estado que dá” mais a “protecção aos desfavorecidos”, sem esquecer a defesa de “políticas de apoio e regulamentação” e o embevecimento dos jornalistas, artistas e demais elites, estes homens tornaram-se praticamente imbatíveis.
Na verdade o Estado não dá, e a protecção aos desfavorecidos, para lá de manter regiamente uma nomenclatura administrativa que nunca cessa de aumentar e de se aumentar, traduz-se na guetização dos ditos mais desfavorecidos que, quais clientes dos patrícios da velha Roma, se tornam cada vez mais dependentes do poder político, ou seja de abonos, casas sociais, complementos disto e daquilo, apoios…
Mas o argumentário do Estado que dá, que investe, que promove, que defende, que participa… não só é transversalmente dominante como constitui um dos dogmas do nosso tempo: veja-se o acriticismo com que entre nós foi recebida a notícia sobre os manuais gratuitos – que obviamente nos custarão caríssimo! – e percebe-se como questionar o “apoio”, o “gratuito”, a “medida igualitária” é um tabu no nosso discurso político e mediático.
Que tanto com Sócrates como com Lula tenha sido necessário chegar aos extremos policiais por todos conhecidos é bem sintomático desse síndroma do “querido líder ao grande líder mas sempre com o líder” que ataca a esquerda. Tal sucede não porque a esquerda seja mais corrupta mas sim porque a complacência em relação aos seus se tornou na sua forma de sobreviver no poder e consequentemente também na sua maldição assim que o deixa.
O reverso desta complacência é a judicialização da vida e da política. E esse é o preço demasiado elevado que estamos a pagar por esta adaptação aos regimes democráticos do servilismo face aos líderes que caracterizou os totalitarismos do passado: os queridos líderes do passado tornaram-se nos grandes líderes de hoje, nos homens visionários, naqueles que viram páginas…
Sejamos claros: se não tivessem acabado envolvidos em casos de corrupção, homens como Sócrates e Lula continuariam a ser considerados não só grandes políticos como promotores do desenvolvimento dos respectivos países. As histórias continuariam a ser abafadas. O que toda a gente sabia continuaria a não ser contado. E sobretudo os seus adversários políticos continuariam incapazes de os derrotar no plano dos argumentos.

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