«Don't mention it!»


Mário Pinto
1. Do rescaldo das comemorações dos 40 anos da revolução da liberdade do «25 de Abril», em vez de respirarmos a brisa perfumada de uma alegria pacífica comummente partilhada, pelo contrário, o que dominou e ficou no ar foi um clima de divisão crítica e hostil, sobretudo por parte de alguns que se consideram os herdeiros imaculados dos ideais de Abril (que são obviamente imaginários, porque a única realidade objectiva do «25 de Abril» foi o que sucedeu como «dito e feito» na revolução), contra outros supostamente inimigos ou traidores.
2. Não há dúvida, a liberdade e a democracia também podem ser apropriadas para o conflito partidário: tal como, antigamente em ditadura, era o valor e o ideal da «ordem» que justificavam uma auto-apropriação da superioridade política de uma dada linha de governo, também agora, em democracia, há pseudo-democratas que se auto-apropriam da revolução da liberdade para proclamar contra os outros a superioridade da sua opção de governo. Apenas com uma diferença: antes, havia alguma coerência, porque a oposição apresentava-se em nome da diferença e da autoridade; hoje é pura contradição, porque a oposição é apresentada em nome da liberdade e da igualdade — isto é, do pluralismo.
3. Ora, a bem dizer, a fonte da liberdade e da igualdade é a Fonte que criou o homem livre e igual, e não cobra nada por isso — antes pelo contrário. A nós, homens, o que nos é pedido é que não aprisionemos a liberdade, uns dos outros, e respeitemos a igualdade. E isto não passa de um dever nosso, cujo cumprimento por definição não merece prémio. Os pseudo-libertadores humanos apenas cumprem a justiça, nada lhes é devido em troca. São servos que fazem o que deviam fazer. No mínimo, ainda que hipocritamente, poderiam ser bem-educados, acomodando-se na clássica fórmula que responde aos agradecimentos: «Don't mention it!».
4. Razão pela qual, porque o não são, Vasco Pulido Valente disse muito bem que nada devemos a quem nos desimpediu a liberdade política em 1974. Se devêssemos, e como alguns querem por um prazo eterno, então teríamos ficado prisioneiros dessa dívida.
5. A democracia (que é o mesmo que viver em justa e ordeira liberdade) é um belo caminho. Mas inseguro, sempre ladeado de escarpas escorregadias de ambos os lados; e com alguns inesperados charcos. Percorrido em multidão que se entreajuda, mas também se empurra. Deve-se por isso andar acordado, não a dormir; cada um por seu pé; não levado ao colo por outros, em cómoda dependência.
6. Se alguém julga que pode dormir descansado e viver descuidado, porque estamos em democracia, está muito enganado e é imprevidente. A democracia necessita de constante defesa, porque é constantemente atacada.
7. Os dois piores inimigos da democracia são: a demagogia e o jacobinismo. A demagogia é a corrupção do povo, quando se promete tudo a todos e sem custos, e o povo aceita. O jacobinismo é a corrupção de um partido dogmático e ávido de poder, que, em nome do «bem comum» ou do «interesse geral», se apropria do aparelho de Estado para exercitar o seu autoritarismo contra a sociedade civil.
8. Infelizmente, a demagogia e o jacobinismo são doenças que se infectam uma à outra. O jacobinismo de Estado é demagógico, porque sabe que, quanto maior for a demagogia, maior é a necessidade da providência do Estado central que ele instrumentaliza. E a demagogia sabe que só pode satisfazer-se à custa de um Estado providência jacobino, porque só sendo autoritário pode ele «tirar mais aos outros para nos dar mais a nós». 

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