650 Anos da Universidade de Cracóvia

JOÃO CARLOS ESPADA Público, 12/05/2014 - 03:36
As universidades americanas são apenas universidades europeias que vivem do outro lado do Atlântico.
Durante três dias intensivos, de sexta a domingo, a Universidade Jagielloniana de Cracóvia celebrou 650 anos. Representantes de dezenas de universidades europeias, americanas e asiáticas participaram no programa. Foi uma rara oportunidade para celebrar a ideia de universidade e explorar a intrigante natureza de uma das mais antigas instituições europeias que ainda hoje perdura.
A Universidade de Copérnico e de João Paulo II foi fundada em 1364. Mantém desde essa época o lema Plus Ratio Quam Vis, a razão acima da força, ou do poder. Este foi aliás o lema gravado na Medalha de Ouro atribuída ao único político agraciado na cerimónia, o presidente da Comissão Europeia, o português José Manuel Durão Barroso.
Plus Ratio Quam Vis é uma excelente expressão da ideia de universidade, tal como ela emergiu, sem ser planeada, da tradição grega e cristã. Foi esta ideia que discutimos na passada sexta-feira em Cracóvia, num debate promovido pelo Europaeum, um consórcio que reúne dez das mais antigas universidades europeias, e que obviamente se associou aos festejos dos 650 anos da Jagielloniana.
No centro desta ideia de universidade está a busca desinteressada do saber. Acreditamos que muitas consequências positivas advirão dessa busca, mas não são essas consequências que justificam ou norteiam a busca do saber. A busca do saber justifica-se a si mesma pelo encanto de perguntar, de admirar o desconhecido, de reconhecer o mistério não desvendado. Michael Oakeshott descreveu memoravelmente esta ideia de universidade:
"A dádiva da universidade é a dádiva de um intervalo. (...) Aqui está um intervalo no tirânico curso de eventos irreparáveis; um período no qual podemos olhar para o mundo e para nós próprios sem o sentimento de ter um inimigo pelas costas ou a pressão insistente para tomar uma decisão ou tomar partido; um momento no qual podemos experimentar o mistério sem ter a necessidade de imediatamente ter de encontrar uma solução. E tudo isto, não num vácuo intelectual, mas rodeados por toda a herdada aprendizagem, literatura e experiência da nossa civilização; não sozinhos, mas na companhia de espíritos congéneres; não como uma ocupação solitária, mas em combinação com a disciplina de estudo de uma área reconhecida do saber."
A autonomia e a independência são as cruciais condições para poder manter este "espírito de intervalo" que Oakeshott atribui à universidade. Ao longo dos séculos, as universidades lutaram arduamente, e recorrendo a todo o tipo de estratagemas, para tentar preservar a sua autonomia e independência. A Universidade Jagielloniana de Cracóvia não foi excepção e deu seguramente grandes exemplos. Foi durante muitos séculos lar do patriotismo polaco, perseguido pelas várias potências ocupantes, a Prússia, a Áustria e a Rússia. No século XX, resistiu aos fundamentalismos rivais nacional-socialista e comunista.
Neste fim-de-semana, ao admirarmos a beleza dos velhos edifícios centenários da Jagielloniana, interrogamo-nos sobre essa força interior de autonomia e independência que define a universidade desde os primórdios. Estará ela ainda presente entre nós? Não estaremos ameaçados pela dependência crescente do financiamento estatal e da crescente regulamentação burocrática? Este foi sem dúvida o alerta dominante que soou na belíssima Aula do Collegium Maius de Cracóvia.
Paradoxalmente, talvez seja nas mais jovens universidades norte-americanas que possamos encontrar inspiração para preservar a ancestral independência da universidade. O seu traço distintivo é a variedade: muitas são privadas, outras estatais, outras religiosas. Todas cobram propinas, oferecendo bolsas de estudo a quem precisa e merece, e todas recorrem a diversas fontes de financiamento. Talvez não por acaso, são as universidades americanas que ocupam os primeiros lugares dos inúmeros rankings internacionais.
Em bom rigor, não existe um sistema americano de universidade. Existem vários sistemas descentralizados. Nessa variedade, encontra-se o ancestral mistério das universidades europeias – que foram resultado de uma cultura comum, mas não de um plano comum. As universidades americanas são por isso apenas universidades europeias que vivem do outro lado do Atlântico. Elas são as nossas sobrinhas mais novas que respeitosamente se reuniram a nós em Cracóvia, neste último fim-de-semana. Em conjunto, celebrámos esse misterioso espírito da universidade europeia, que insiste em perdurar: Plus Ratio Quam Vis.

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