Um Natal Sem o Menino

MARIA FILOMENA MÓNICA
Público, Sexta-feira, 5 de Janeiro de 2001

No Natal de 1950, numa cartinha ao Menino Jesus, eu indicava o que pretendia: "9 cadernos e lápis de cores e um lápis preto." Junto de mim, a mãe enfeitava o presépio. Quando terminei a missiva, já ela tinha colocado o Menino, coberto com um vestido de brocado, entre a Virgem e o S. José. Eu olhava tudo aquilo - o presépio com o burro e a vaca, o pinheiro com bolas de vidro, as estrelas doiradas pelo tecto - com antecipação. Daí a dias, à meia-noite, ouviríamos em S. Pedro de Alcântara um grupo de freiras cantar, ao longe, o "Adeste Fidelis". Depois, com os nossos melhores fatos, voltaríamos para casa. Só então, perante o Menino acabado de nascer, abriria os presentes que Ele, ou alguém em Seu nome, me oferecera. Nesse ano, obtive o que pedira. Mas o meu fascínio pelo Natal foi de curta duração.
Após três recusas sucessivas do Menino em dar-me uma bicicleta (com o argumento, transmitido pela minha mãe, de não ser eu um rapaz), revoltei-me. Para indignação do resto da família, deixei de ajudar a fazer o presépio. O tempo só agravou o meu estado de espírito. Mas continuei a estar presente na festa. Mesmo agora, que uma doença terrível pela primeira vez impediu a minha mãe de participar, lá estive, em casa dela, na noite de consoada.
Poucos dias antes, fora, com as minhas duas netas, a uma coisa intitulada "Presépio Vivo", no Parque das Nações. O espectáculo, intitulado "O Filho do Mundo" (encomendado pela Parque Expo-98 ao Teatro Multiculturas) era imbecil. Sob a pala do arquitecto Siza Vieira, vários actores movimentavam-se à volta de uma manjedoura onde estava depositado um bebé-chorão. Os Reis Magos apareciam acompanhados de esposas grávidas. As palavras, que saíam de um aparelho de alta-fidelidade, não eram as do Evangelho, tendo o encenador-autor, Thiago Justino, preferido incluir, à mistura com textos poéticos de autores contemporâneos, extractos de S. Francisco de Assis. O "placard" explicava a filosofia do empreendimento: "O nosso presépio faz parte da vida quotidiana. O cenário é uma gruta que amplia o seu espaço até poder abraçar o mundo inteiro. O planeta Terra é a manjedoura, onde, nos dias de hoje, Maria daria à luz um filho universal, fruto da união de todos os povos." Em suma, as grávidas representavam a multiculturalidade; o bebé-chorão, o Menino Universal. A natividade surgia como um "happening" multicultural, de onde qualquer vestígio do sagrado tinha desaparecido. Significativamente, uma das crianças, a meu lado, insistia em querer levar para casa o bebé-chorão.
Fui dali, com as minhas netas, ver o presépio concebido por Machado de Castro para o Marquês de Belas. Instalado no Museu Nacional de Arte Antiga, aquele (aliás muito mal iluminado) não entusiasmou as pimpolhas. Ainda se riram da velha com um galo ao colo, mas o Menino perdia-se entre a profusão das figuras. Passados alguns segundos, já ambas deambulavam pela capela das Albertas. Ao fundo, descobriram, de cada lado do sacrário, duas estatuetas, uma da Virgem, com o Menino na mão, outra, de S. José, com Ele ao colo. Perguntaram-me quem eram. Respondi-lhes o melhor que sabia, mas elas resistiram à explicação. Que não, disseram-me: o Menino nascera de uma estrela. Eu olhava para a mais velha, que insistia no disparate, com olhos arregalados. De uma estrela? Sim, ela sabia muito bem. De uma estrela.
Entretanto, tinham descoberto qualquer coisa que as fascinara: um Cristo na cruz. "E este quem é?", indagaram. O melhor que consegui arranjar foi: " É o Menino Jesus depois de crescido." Sádicas, como todas as crianças, quiseram saber a razão por que estava ele a sangrar: "Porque havia quem não acreditasse que ele era um deus." Antes de ser sujeita a mais perguntas, arrastei-as até casa. Aqui, expliquei-lhes que, durante séculos, muita gente, os cristãos, tinham acreditado que Jesus, também chamado o Cristo, era um deus. Acrescentei que, em pequenina, também eu assim pensara, mas que, agora, deixara de crer. Abespinhada, a mais velha respondeu-me: "Eu cá acredito." A outra, que sistematicamente repetia as frases desta, acrescentou: "Eu também." E foi em coro que me revelaram: "Acreditamos que Hércules é um deus, filho de outro deus."
Que se passara para que, num fim-de-semana natalício, duas miúdas portuguesas, sangue do meu sangue, se revelassem adeptas da mitologia greco-romana? Não tardaram, elas próprias, a dar-me a resposta. Eram devotas de Hércules, porque, lá em casa, tinham um vídeo, muito giro, sobre ele.
Tudo isto pode parecer uma sucessão de incidentes sem importância. Não é assim que os vejo. A invasão do politicamente correcto na história da natividade é grave, como grave é a ignorância da história das religiões, em que os católicos são exímios. Um dia, gostaria de levar as minhas netas à National Gallery, de Londres, para lhes mostrar os anjos rodopiantes da "Natividade" de Botticelli, mas sei que o quadro só é compreensível a quem esteja familiarizado com a história do cristianismo, tal como o "Um sátiro chorando sobre uma ninfa", de Piero di Cosimo, só pode ser devidamente apreciado por quem conheça a mitologia greco-latina.
Deixando de lado esta última, concentremo-nos na liturgia da natividade.
Muitos dos jovens que estão em vias de atingir a Idade da Razão não têm a mínima ideia do significado da festa. Não penso que a perda da fé cristã tenha sido, no meu caso, uma tragédia. Nem que a educação, agnóstica, que dei aos meus filhos os tenha prejudicado. Não desejaria que as minhas netas, de seis e três anos, fossem, como eu, obrigadas pelo Estado a frequentar aulas de Religião Católica, mas considero que seria bom que alguém lhes explicasse, um dia, os fundamentos da crença em que os seus antepassados foram educados. Provavelmente irão ser as Produções Walt Disney a fazê-lo. Tudo é melhor do que o espectáculo em exibição no Parque das Nações. 

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