As intrigas certas

Pedro Lomba  
Público, 20/12/2012

Todos os anos há um número elástico de intrigas que ajudam a perceber a discussão pública. Jornalista que se preze tem de conhecer as intrigas certas, tem de as explorar e repetir. Quando digo "intrigas", refiro-me a um linguajar simplista que se desenvolve por dicotomias e serve para inflamar ânimos e divisões. Algumas são fabricadas pelos jornais e televisões; outras vêm dos megafones do governo ou dos partidos da oposição, os primeiros interessados na rede de intrigas.
Vi por aí um livro que ensina como falar com pose e falsa erudição sobre livros que nunca se leu. Ideal para festas ou tempos embaraçosos. Admito que a coisa funcione neste registo. Em Busca do Tempo Perdido? Uma obra revolucionária em que o protagonista rememora o passado, desafiando a nossa consciência do tempo e aquilo que o tempo nos faz. Ana Karenina? Uma história sobre uma mulher genuína que deseja amar contra as convenções de uma sociedade aristocrática, repressiva e hipócrita.
O universo das intrigas políticas assemelha-se a este guião de frases vazias para iludir inocentes. O princípio é, aliás, idêntico: um jornalismo que segue um roteiro enlatado. Não forçosamente por dolo. Mas porque age segundo instintos pavlovianos.
Vai um velho político do PSD com ar senatorial à televisão. A primeira pergunta que lhe fazem é se este PSD ainda tem alguma marca social-democrata. Não interessa tentar pensar sobre o que era a social-democracia do PSD nos anos 70 e 80, o que se tornou depois aqui e no mundo e o que é e pode ser hoje. Não interessa perceber em que medida a geração do poder é diferente das anteriores. O que conta é arrancar a ferros uma frase do entrevistado a respeito da intriga. E se ele responder que não vê vestígios de social-democracia, fica cumprida a intriga. Venha o próximo.
Sobre os partidos da coligação ou António José Seguro passa-se o mesmo. A intriga no interior do PS depende de um nome: António Costa. Seguro bem pode ter o partido nas mãos. Mas é preciso que Costa vá falando, se possível com mensagens cifradas, para promover a intriga dos descontentes ou opositores. Na coligação também é preciso ir ouvindo os políticos de um em busca de ferroadas nos do outro.
A presumível oposição entre caridade e solidariedade social, agora em voga, é mais um momento de intriga. Contribui patrioticamente para a separação clubística entre adeptos do Estado caritativo e do Estado social. Que o mundo seja um pouco mais complexo do que isso não serve para nada. Escolham o vosso campo e, sobretudo, não digam coisas confusas.
E o que dizer da frase: "Bater o pé na Europa"? Não há dia em que não a ouçamos. E também não há dia em que quem a usa ajude a decifrar o seu significado concreto. Mas é preciso continuar com a intriga de que uns "batem o pé à Europa" e outros "não batem".
É este um dos mais tristes sinais da irrelevância a que a imprensa se autocondenou. Só pensa dentro da intriga. Porque a intriga faz parte da política e é de certo modo a política. Mas a política é também aquilo que precisa de ser desmontado com um discurso exterior. Se nos limitamos a servir destas rações, o que nos resta? Um público que não existe como público mas como autor de outras intrigas e "contra-intrigas"? Uma sociedade em que uns participam da intriga e outros se recusam já a ouvir?

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