Saramago, o último intelectual marxista

JN2010.06.27 Zita Seabra
Morreu José Saramago e com ele morreu o último de muitos que, ao longo do século XX, se comprometeram com o comunismo e encontraram na ideologia marxista o sentido da sua escrita ou da sua arte. O seu nome junta-se ao de Gorki, Aragon, Picasso, Jorge Amado ou Paul Éluard, uma lista enorme de intelectuais que passaram pelas fileiras dos partidos comunistas. Saramago foi, como homem e como escritor, um empenhado militante da ideologia que abraçou e que lhe marcou sempre a vida e a escrita. A ideologia enquanto visão global do homem, da sociedade, da religião que Marx e Engels teorizaram e que Lénine, Mao, Brejnev ou Fidel, entre outros, levaram à prática.
Olhando para a vida e a escrita de José Saramago, o que mais impressiona é o facto de ele ter vivido e visto o comunismo ruir na URSS e nos países do bloco de Leste, como a RDA, a Hungria, a Checoslováquia, a Roménia, a Albânia, entre muitos outros, e ter silenciado esse facto. Confrontar-se com o sofrimento daqueles povos, já não nos relatos de Sakharov ou de Soljenítsin, mas nas imagens dos directos das televisões e passar ao lado da alegria com que abraçaram a liberdade.
Nem o confronto directo com o balanço dramático das vítimas dos que se libertaram do comunismo o fez alguma vez ter escrito ou dito qualquer palavra. O silêncio de quem usa a escrita é mais visível. Os seus gestos foram de quem passava ao lado: logo a seguir à queda do muro de Berlim, candidatou-se nas listas do Partido Comunista à autarquia de Lisboa. Que balanço faria dos anos de comunismo e do sofrimento das pessoas que viveram na pele um dos dois grandes horrores do século XX?
Saramago não passou, que se leia em nenhum dos seus textos, por qualquer crise. Não lhe doeu, não se interrogou, não sofreu com o terrível juízo que a história fez, sem remissão nem perdão, do totalitarismo comunista.
De Saramago, mesmo quando o comunismo foi julgado pela História, não se conhece nenhum sobressalto, nenhuma angústia. Muitas vezes me interroguei se seria uma total e completa insensibilidade moral?
É certo que, ao longo do século XX, muitos dos intelectuais marxistas viveram mergulhados na ideologia totalitária e nunca olharam à sua volta. Não foram todos, claro. Uns sobressaltaram-se logo em 1917, outros com o Pacto Germano-Soviético, na invasão da Checoslováquia, ou da Hungria, ou na chacina do Camboja, ou na loucura da Revolução Cultural Chinesa.
José Saramago não. Viveu e morreu mergulhado num mundo que ruiu à sua volta e cujo dramático balanço foi feito com muita dor. Sem uma palavra, sem uma linha, sem uma lágrima por quantos (milhões) de pessoas, de famílias, de gente, de operários, camponeses ou intelectuais que, ao longo do século XX, morreram e sofreram em nome do comunismo por todo o lado onde o marxismo passou da revolução ao Poder.
Nem um gesto teve quando lhe pediram apoio os dissidentes cubanos presos por Fidel. Nem mesmo quando Susan Sontag o confrontou com esse facto. Uma única dúvida subsiste, porém, quando se observa que visitou Cuba diversas vezes, mas nunca foi à Rússia libertada, apesar de ter sido convidado a lançar os seus livros e a debatê-los numa universidade de Moscovo - aí o confronto com a história seria certamente impossível de ignorar e de silenciar. Um confronto que, reconheço, é muito difícil de viver.

Comentários

Anónimo disse…
Saramago, só fez mal ao mundo! Com o seu silêncio, quando devia falar, ( e usar o valor que lhe dava o prémio Nobel), com as suas escritas frias e distantes de tudo e de todos, com o seu empenho em promover a ideologia marxista e simultâneamente, em destruir a Igreja fundada por Jesus cristo, tentando apagar o nome de Deus da face da terra, tapando os ouvidos, aos angustiantes e desesperados clamores humanos...Nego-me a acreditar que ele acreditasse no que escrevia ou afirmava! A inquietude dele, provinha da confusão que lhe fazia, tanta gente tão instruída e tão culta, rechaçar veementemente, a ditadura comunista que ele se tinha proposto defender...
Hermano Marques disse…
14 Abri 2003:
"Cheguei até aqui. De agora em diante, Cuba seguirá seu caminho e eu fico. Divergir é um direito que se encontra e se encontrará inscrito com tinta invisível em todas as declarações de direitos humanos passadas, presentes e futuras. Divergir é um ato irrenunciável de consciência. Pode ser que divergir conduza a traição, mas isso sempre tem que ser demonstrado com provas irrefutáveis. Não acredito que se tenha agido sem deixar margem à duvidas no julgamento recente de onde sairam condenados a penas desproporcionais os cubanos dissidentes. E não se entende, se houve conspiração, porque não foi expulso o encarregado da Seção de Interesses dos EUA em Havana, a outra parte da conspiração.

Agora chegam os fuzilamentos. Sequestrar um barco ou um avião é um crime severamente punível em qualquer país do mundo, mas não se condena a morte os sequestradores, principalmente tendo em conta que não houve vítimas. Cuba não ganhou nenhuma batalha heróica fuzilando esses três homens, mas perdeu minha confiança, quebrou minhas esperanças, traiu meus sonhos. Cheguei até aqui."José Saramago

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