Celebrar

Celebrar
Público, 20100610  Pedro Lomba


Mais que uma vez tenho escrito sobre este dever: o dever de comemorar. "Quem muito cronica muito repetica", disse uma vez João Bénard da Costa (fez um ano que o escritor morreu e lembro-o agora). Hoje, dia 10 de Junho, feriado de Camões e das Comunidades, tenciono repetir-me. Não para me juntar aos cronistas fatais do nosso declínio, explorando obsessões com o passado. Mas porque quero falar da exacta frustração que sempre senti num país que praticamente não celebra nada, que, pior, parece alimentar uma raiva envergonhada contra a dimensão comemorativa que deve existir na vida pública.

Nós, portugueses, não celebramos. E o pouco daquilo que celebramos (vitórias futebolísticas, certas festas religiosas) chega para demonstrar como temos sido rotineiramente ensinados para não celebrar nada. Temos sido educados para recusar o dever de comemorar na política e fora da política, desprezando rituais, símbolos, imagens, memórias colectivas, toda essa corrente de experiências não racionais de que as sociedades e as pessoas também dependem.

Há um cinismo de direita que consiste em apresentar o país como irremediavelmente perdido. Mas há um cinismo de esquerda, mais nocivo porque mais tolerado, que ataca a própria existência de uma cultura da celebração. Podemos comemorar talvez a descida do desemprego, porque reduzimos a política à economia. Tudo o resto passará por proselitista e controverso. Mas não se pensa que, para fazer descer o desemprego, é também importante que um país se organize em torno de valores colectivos, que celebre esses valores, que honre os seus símbolos e exemplos, que actue em função de uma retórica pública. O todo antes das partes.

Nenhum Estado pode dispensar essa retórica, pela simples razão de que nada tem depois capaz de a preencher.

Para que os portugueses a interiorizassem, era preciso que a educação pública não tivesse fomentado em todos nós um autêntico muro de silêncio e vergonha. Pergunto sempre: em quantas escolas, do secundário à universidade, se celebra dignamente o início e o fim do ano lectivo, a atribuição dos diplomas e prémios, a entrada e a saída dos estudantes? Gerações de alunos passaram anos pelas universidades sem nunca terem sentido que fizeram parte de alguma coisa. Receberam passivamente um serviço, como se fossem ao hospital. Não admira que a maioria esqueça depressa que lá andou.

Era preciso que o discurso dominante na política não fosse o do mais absoluto desprezo por qualquer retórica pública. A América percebe a importância da expressão "em busca da felicidade" inscrita na sua Declaração da Independência. Pensa que, através da sua força persuasiva, as pessoas empenhar-se-ão em busca dos seus projectos de felicidade. Apesar de termos uma Constituição palavrosa, entre nós reina uma incapacidade de verbalizar ideias semelhantes.

Era preciso uma cultura da celebração plenamente aberta à distinção e à solenidade. Celebrar significa solenizar, distinguir, reconhecer. O acto de celebrar requer alguma humildade e desprendimento. Celebra-se não tanto o que fomos, mas o que valorizamos em grupo e o que queremos ser. Tudo aspectos que a nossa baixa educação histórica e cívica repele.

Nas últimas décadas o preço da nossa paz política foi esse: uma sociedade hostil e indiferente a qualquer política simbólica. Uma sociedade sem sentido da História, da grandeza, da aspiração. E por isso também uma sociedade que perdeu o dever de comemorar, resignada que está à sua vulgaridade e vazio. Jurista

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