Retrato sem retoques
José António Saraiva no SOL - 25.Junho.2010
Um homem que sempre foi duro, e até rude, na apreciação das pessoas e das situações, merece mais do que os retratos de circunstância, retocados e adocicados, que têm sido feitos nos últimos dias.
Conheci José Saramago antes de saber quem ele era. O ateliê de arquitectura onde comecei a trabalhar ficava na Rua Viriato – em Lisboa, perto da Praça do Saldanha – e ia muitas vezes almoçar a um restaurante chamado Forno da Brites, que distava uns 100 metros da porta do nosso prédio.
Um dia, pouco depois do 25 de Abril, sentou-se nesse restaurante, na mesa ao lado da minha, um casal. A mulher era loura, bonita, de olhos muito azuis, e o homem era alto, mal encarado, de cabelo comprido na nuca. O almoço daqueles dois seres foi uma autêntica sessão de tortura. O homem falou durante quase toda a refeição, num tom áspero, de quem ralhava, e a mulher ouvia, com ar sofredor. A certa altura começou a chorar, abriu a mala, tirou um lenço e limpou as lágrimas. Mas nem assim o homem se comoveu – e continuou a ralhar no mesmo tom agreste, que durou até ao fim do almoço.
Eu conhecia a mulher de a ver em fotografias: era Isabel da Nóbrega. E aquela cena impressionou-me muito. Quando cheguei a casa contei o episódio a minha mãe, que me disse conhecer bem Isabel da Nóbrega, tendo chegado ambas a sair juntas no tempo em que esta namorava com João Gaspar Simões. E acrescentou:
– O homem que estava com ela devia ser o Saramago… É com quem agora vive.
Nessa altura, eu só tinha ouvido falar vagamente de Saramago. Mas logo a seguir ele começou a ter muito protagonismo, como director-adjunto do Diário de Notícias, que se tornara um jornal comunista ortodoxo. Não deixava de ser irónico, aliás, ver um diário que uns meses atrás era quase um órgão oficioso do Estado Novo defender as maravilhas da revolução proletária.
Começaram então a circular histórias de plenários e saneamentos no DN de que Saramago seria o executor, actuando de forma implacável. E, não sabendo eu se eram ou não verdadeiras, tendia a acreditar que sim pela imagem com que dele ficara a partir daquele almoço.
E uma crónica que assinou por essa época na 1ª página, chamada Esquerdalhos e Pirómanos, publicada no dia seguinte ao assalto à embaixada de Espanha, também me impressionou muito mal. Embora eu estivesse de acordo com a condenação daquele acto de vandalismo, senti-me incomodado com a linguagem usada no texto, os termos grosseiros empregues, o rancor que dali transparecia.
Pouco depois Saramago saiu da direcção do DN e deixei de ouvir falar dele. Até à publicação do Memorial do Convento, que foi um grande acontecimento editorial. Li o livro, como quase toda a gente, e achei algumas páginas notáveis – embora não o tenha acabado. A partir de certa altura a história parecia já não poder ter qualquer novidade.
Isso não me impediu de ler outros, como A História do Cerco de Lisboa ou O Ano da Morte de Ricardo Reis, onde fui consolidando a impressão de se tratar de um bom escritor mas pesado, com uma prosa um tanto mastigada e pouco surpreendente.
Claro que vibrei com a atribuição do Prémio Nobel, onde pesou a minha costela patriótica – embora na altura Saramago já estivesse fora do país, renegando de certa maneira a nacionalidade.
À medida que José Saramago se ia tornando célebre e mais conhecido, fui confirmando a primeira impressão que retive dele: uma pessoa amarga, zangada com o mundo, pouco simpática e pouco interessante nas suas intervenções públicas. As entrevistas televisivas que ia dando eram sempre baças, destituídas de rasgo, não parecendo a mesma pessoa que escrevia bons livros de ficção.
Um belo dia – já era eu director do semanário Expresso – o director-adjunto, Joaquim Vieira, veio propor-me que Saramago tivesse uma coluna de opinião na 1ª página. Depois de reflectir uns segundos, disse-lhe que não – explicando que, dessa forma, a opinião de Saramago passaria a ser a mais importante do jornal, a mais marcante, o que não fazia sentido, até por ele ser assumidamente comunista.
Teria algum sentido um jornal de matriz liberal ter como principal colunista (sobrepondo-se mesmo ao Editorial) um militante do Partido Comunista?
Contudo, vim a saber mais tarde que essa coluna já lhe tinha sido mais ou menos prometida, pelo que a minha recusa teve um impacto maior, levando Saramago a estabelecer com o Expresso (e em particular comigo) uma relação hostil.
Mas a Clara Ferreira Alves, que era redactora-principal e mantinha com ele uma boa relação, visitando-o mesmo em Lanzarote, ofereceu-se para mediar uma tentativa de reconciliação. Palavra para cá, palavra para lá, ficou combinado que eu lhe falaria.
Telefonei então para Lanzarote. Ele veio ao telefone com ar enfadado e disse-me que uma «reconciliação» com o Expresso passava pelo desmentido de uma notícia saída em 1975 sobre a sua acção no DN. Tendo em conta que estávamos em 1994 ou 95, tratava-se de uma notícia com 20 anos!…
Localizei a notícia, que não era mais do que uma local publicada na Gente (uma secção ligeira) onde se escrevia o que toda a gente dizia na época: que, como director-adjunto do DN, Saramago tinha um comportamento estalinista. Não encontrei nada na notícia que não fosse voz corrente naquele tempo – pelo que não vi qualquer razão para a desmentir. E foi isto mesmo que comuniquei a Saramago, em cartão que lhe enviei.
A partir daí não houve mais contactos.
Mas continuei a discordar frontalmente das suas intervenções públicas, das suas opiniões e de algumas das suas atitudes.
Senti-me chocado quando verifiquei que, a partir de determinada edição, ele retirou do Memorial do Convento a dedicatória a Isabel da Nóbrega. Eu pensava que a dedicatória de um livro era para a vida – mas enganei-me. Muito tempo mais tarde viria a conhecer Isabel da Nóbrega, que me contou episódios a seu respeito de pôr os cabelos em pé, proibindo-me porém de os reproduzir. E Agustina Bessa-Luís dir-me-ia um dia:
– Foi a Isabel que o ensinou a escrever e ele tratou-a tão mal…
O curioso é que Saramago, tratando mal muita gente, se indignava muito quando se sentia mal tratado. Revoltou-se contra Sousa Lara – e o próprio país – por não indicar um livro seu para um prémio literário. Ora não é verdade que Saramago apoiava o regime soviético, que praticava uma censura feroz sobre tudo o que se publicava?
E a defesa do voto em branco, no Ensaio Sobre a Lucidez, não soava a vingança contra a democracia? Percebendo que o seu partido, o PCP, nunca ganharia umas eleições, Saramago lançou-se a defender o voto em branco (recuperando um apelo do MFA em 1975), extraindo daí conclusões pouco aceitáveis sobre o esgotamento do regime democrático.
Impressionou-me também quando, numa entrevista, afirmou que não existia o espírito, só a matéria. Então os livros que escreveu são apenas matéria? São combustível para as lareiras? Ou o importante nesses livros (e nos outros todos) não é a matéria de que são feitos mas o espírito que a matéria condensa?
Impressionou-me, ainda, quando contestou o patriotismo a propósito do seu país – ele que tanto defendeu o direito de outros povos à independência…
E não percebi como pôde defender sempre o comunismo, um regime desumano, violento, castrador em todos os lados em que se implantou.
Fez-me confusão ele não ter percebido a importância de uma sociedade plural. Não entender que o comunismo é, pela sua natureza, inimigo da liberdade de pensamento – porque se impõe a partir do Estado, de cima para baixo, e um Estado que detém o poder político, o poder económico e o poder doutrinário, é de sua própria natureza totalitário.
A democracia só poderá existir, com todos os seus defeitos, numa sociedade descentralizada, em que os poderes estão separados. Os empresários, os banqueiros, os comerciantes, os bispos, os políticos, toda esta gente que Saramago detestava é o que garante a descentralização do poder, o que impede que o poder esteja todo concentrado numa clique que, pela ordem natural das coisas, se torna prepotente.
Nunca um poder concentracionário, não descentralizado, garantirá uma democracia.
Não quero terminar sem uma nota de reconhecimento.
Foi ao SOL que Saramago deu uma das suas últimas grandes entrevistas e a primeira depois da doença que em 2008 quase o matou. Aquela em que diz que Pilar lhe «deitou a mão à gola do casaco e não o deixou cair no poço». É uma entrevista bela, humana, talvez por se sentir fragilizado e reconhecido à mulher. Aliás, Pilar del Rio foi a única mulher que teve o dom de humanizar Saramago, o levar a ser humilde, grato, doce. Foi talvez a única mulher que ele verdadeiramente amou – e esse sim, foi um amor bonito.
Devo dizer que editei essa entrevista com o maior cuidado. Ela foi justamente capa da nossa revista, a Tabu, e além disso ocupou quase metade da primeira página do jornal.
Sempre lidei assim com as pessoas: o facto de gostar mais ou menos desta ou daquela nunca influenciou o modo como as tratei no plano jornalístico.
Saramago deu-nos a honra de nos conceder uma das suas últimas entrevistas – e nós tratámo-lo o melhor que soubemos e pudemos.
Assim é que deve ser.
Mas não sei se em situação inversa ele faria o mesmo.
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